O Uso Público e Privado da Razão
“Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado. Ora, para muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer.”
“[...] Entendo, contudo sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado.” (Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento - Immanuel Kant)
É bem possível dizer que Kant, quando escreveu “Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento?”, ele estava exercendo seu saber dentro dos limites do condicionamento do uso privado da razão. Ora, esta idéia de que em um setor de nossas vidas o pensamento está limitado institucionalmente - isto é, limitado às convenções e normas do estado - nos remeterá necessariamente em um eterno uso privado da razão. O que Kant entende como uso público da razão ainda está dentro das convenções estatais: por mais que não seja mais um serviço prestado formalmente – burocraticamente - ao estado, este ainda se encontra em suas outras formas no cotidiano, inclusive, na fiscalização de qualquer material intelectual que esteja circulando nos limites públicos. O público para Kant é ainda precisamente o território do estado que, obviamente, não aceitaria nada além que lhe tivesse utilidade egoísta assim como a mão-de-obra de um professor da cátedra. Em uma peculiar exceção, o máximo que se aceitaria seria o que lhe parecesse inofensivo, “meramente poético”, exagerado ou absurdo como podemos saber pelo depoimento daquele que veio autorizar a principal obra do jovem hegeliano Max Stirner: “[...] o ministro Von Falteinstein vem autorizar a publicação do livro, considerando que era ‘demasiado absurdo para ser perigoso’, e argumentando que “o livro se lê em grande medida como se fosse irônico e se refutasse clamorosamente a si próprio’.”. Esperar que durante todo o pensamento de um homem suas inferências estarão coincidentemente em acordo, ou melhor, guiado autonomamente e paralelamente aos interesses de um superior é esperar uma coincidência que em sua enorme probabilidade não se poderá chamar de filosofia sincera. O porquê nos parece claro, em Schopenhauer, quando este se refere à como se comportam os servos imediatos do Estado com uma filosofia estreante: “De fato, não ocorre a um professor de filosofia verificar se um novo sistema estreante é verdadeiro, mas apenas se ele pode harmonizar-se com as doutrinas da religião do Estado, com as intenções do governo e com as opiniões dominantes da época.”. A suspeita ressonância com a doutrina do Estado que podemos identificar em diversas filosofias faz do uso público e privado da razão de Kant algo bem tendencioso. Como se alguém estivesse preocupado, antes de mais nada – antes da filosofia – com a sua pele. Trata-se, sobretudo, de fazer filosofia sob certas condições que nunca a tornará verdadeira. Portanto, segundo a citação de Espinoza em Hanna Arednt: “A preocupação pela existência não terá primazia nítida em relação ao resto – qualquer virtude e qualquer princípio? [...] ‘não existe lei mais alta que a sua própria segurança’.”.
Ao que parece de pouco vale separar o público e privado no exercício da filosofia, pois onde quer que ela ande estará no território e vistas do Estado. Um filósofo não se torna autêntico ao fim do dia quando já prestou seus serviços privados e pode então voltar-se ao “grande público do mundo letrado”. Enxerga-se uma embaraçosa tentativa de demonstrar que as “garras” do Estado não machucam tanto assim, esteja estas no campo privado ou público: “Porque no que se refere às artes e ciências nossos senhores não têm nenhum interesse em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é de todas a mais prejudicial e a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado que favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo no que se refere à sua legislação, não há perigo em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria razão e expor publicamente ao mesmo por meio de uma corajosa crítica do estado de coisas existente”. No âmbito público, a liberdade, segundo Kant, será indispensável para a saída da menoridade rumo ao esclarecimento. Esta liberdade, entendida neste contexto por Kant como o livre uso público da razão, é obscura: pois ainda que surja com certa luz no exercício público ela acaba por ser absorvida pela “coincidente” necessidade de estar em ressonância com o Estado. Desenvolvendo uma admirável crítica, Schopenhauer, em um trecho de uma de suas obras, Sobre a Filosofia Universitária, vacila no final com suas ocasionais paparicações: “Mas o pior é que, a todo pensamento que de algum modo ainda ocorra a um homem em tal situação [a de professor], logo lhe assalta a preocupação de saber se tal pensamento poderia convir às intenções dos superiores: isso paralisa tanto seu pensar, que os próprios pensamentos já não ousam ocorrer. A atmosfera de liberdade é indispensável à verdade. Sobre a exceptio, quae firmat regulam, ou seja, sobre o fato de Kant ter sido professor, já mencionei antes o necessário acrescento apenas que também a filosofia de Kant ter-se-ia tornado mais elevada, decidida, pura e bela, se não tivesse assumido aquela cátedra. Embora ele, mui sabiamente, tenha mantido o filósofo o mais longe possível do professor, já que não expunha sua própria doutrina na cátedra.”. As irrisórias críticas ao Estado de Schopenhauer não o retira – simplesmente porque não é professor – do condicionamento de sua filosofia. Uma vez – seja Kant, Hegel, ou Schopenhauer – tendo em primazia, como o disse Hannah Arendt, a segurança da própria pele antes da filosofia, não será válido, em nenhuma condição, o discurso filosófico sobre o que verdadeiramente aponte para a verdade, isto é, para a sinceridade com o todo e consigo mesmo.
É bem possível dizer que Kant, quando escreveu “Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento?”, ele estava exercendo seu saber dentro dos limites do condicionamento do uso privado da razão. Ora, esta idéia de que em um setor de nossas vidas o pensamento está limitado institucionalmente - isto é, limitado às convenções e normas do estado - nos remeterá necessariamente em um eterno uso privado da razão. O que Kant entende como uso público da razão ainda está dentro das convenções estatais: por mais que não seja mais um serviço prestado formalmente – burocraticamente - ao estado, este ainda se encontra em suas outras formas no cotidiano, inclusive, na fiscalização de qualquer material intelectual que esteja circulando nos limites públicos. O público para Kant é ainda precisamente o território do estado que, obviamente, não aceitaria nada além que lhe tivesse utilidade egoísta assim como a mão-de-obra de um professor da cátedra. Em uma peculiar exceção, o máximo que se aceitaria seria o que lhe parecesse inofensivo, “meramente poético”, exagerado ou absurdo como podemos saber pelo depoimento daquele que veio autorizar a principal obra do jovem hegeliano Max Stirner: “[...] o ministro Von Falteinstein vem autorizar a publicação do livro, considerando que era ‘demasiado absurdo para ser perigoso’, e argumentando que “o livro se lê em grande medida como se fosse irônico e se refutasse clamorosamente a si próprio’.”. Esperar que durante todo o pensamento de um homem suas inferências estarão coincidentemente em acordo, ou melhor, guiado autonomamente e paralelamente aos interesses de um superior é esperar uma coincidência que em sua enorme probabilidade não se poderá chamar de filosofia sincera. O porquê nos parece claro, em Schopenhauer, quando este se refere à como se comportam os servos imediatos do Estado com uma filosofia estreante: “De fato, não ocorre a um professor de filosofia verificar se um novo sistema estreante é verdadeiro, mas apenas se ele pode harmonizar-se com as doutrinas da religião do Estado, com as intenções do governo e com as opiniões dominantes da época.”. A suspeita ressonância com a doutrina do Estado que podemos identificar em diversas filosofias faz do uso público e privado da razão de Kant algo bem tendencioso. Como se alguém estivesse preocupado, antes de mais nada – antes da filosofia – com a sua pele. Trata-se, sobretudo, de fazer filosofia sob certas condições que nunca a tornará verdadeira. Portanto, segundo a citação de Espinoza em Hanna Arednt: “A preocupação pela existência não terá primazia nítida em relação ao resto – qualquer virtude e qualquer princípio? [...] ‘não existe lei mais alta que a sua própria segurança’.”.
Ao que parece de pouco vale separar o público e privado no exercício da filosofia, pois onde quer que ela ande estará no território e vistas do Estado. Um filósofo não se torna autêntico ao fim do dia quando já prestou seus serviços privados e pode então voltar-se ao “grande público do mundo letrado”. Enxerga-se uma embaraçosa tentativa de demonstrar que as “garras” do Estado não machucam tanto assim, esteja estas no campo privado ou público: “Porque no que se refere às artes e ciências nossos senhores não têm nenhum interesse em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é de todas a mais prejudicial e a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado que favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo no que se refere à sua legislação, não há perigo em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria razão e expor publicamente ao mesmo por meio de uma corajosa crítica do estado de coisas existente”. No âmbito público, a liberdade, segundo Kant, será indispensável para a saída da menoridade rumo ao esclarecimento. Esta liberdade, entendida neste contexto por Kant como o livre uso público da razão, é obscura: pois ainda que surja com certa luz no exercício público ela acaba por ser absorvida pela “coincidente” necessidade de estar em ressonância com o Estado. Desenvolvendo uma admirável crítica, Schopenhauer, em um trecho de uma de suas obras, Sobre a Filosofia Universitária, vacila no final com suas ocasionais paparicações: “Mas o pior é que, a todo pensamento que de algum modo ainda ocorra a um homem em tal situação [a de professor], logo lhe assalta a preocupação de saber se tal pensamento poderia convir às intenções dos superiores: isso paralisa tanto seu pensar, que os próprios pensamentos já não ousam ocorrer. A atmosfera de liberdade é indispensável à verdade. Sobre a exceptio, quae firmat regulam, ou seja, sobre o fato de Kant ter sido professor, já mencionei antes o necessário acrescento apenas que também a filosofia de Kant ter-se-ia tornado mais elevada, decidida, pura e bela, se não tivesse assumido aquela cátedra. Embora ele, mui sabiamente, tenha mantido o filósofo o mais longe possível do professor, já que não expunha sua própria doutrina na cátedra.”. As irrisórias críticas ao Estado de Schopenhauer não o retira – simplesmente porque não é professor – do condicionamento de sua filosofia. Uma vez – seja Kant, Hegel, ou Schopenhauer – tendo em primazia, como o disse Hannah Arendt, a segurança da própria pele antes da filosofia, não será válido, em nenhuma condição, o discurso filosófico sobre o que verdadeiramente aponte para a verdade, isto é, para a sinceridade com o todo e consigo mesmo.
- Benny
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