Max Stirner: Introdução ao Prefácio do Único.
As semelhanças ou aproximações com outros autores de início já se apresentam. Não há dúvida que Nietzsche e Stirner, por exemplo, possuem raciocínios que compartilham de muito em comum. Também é dito que em Deleuze prerrogativas em comum se apresentam (Saul Newman, 2005: 13). Outros autores próximos a citar são: Foucault, Guy Debord, Raoul Vaneigem, etc. Em A Arte de Viver Para As Novas Gerações, de Raoul Vaneigem, a aproximação com a obra de Stirner, se coincidente, ou não, faz-se íntima. Entre os ativistas que se inspiraram, ou foram indiretamente influenciados por Stirner, estão Sergey Nechayev, Émile Armand, Élisee Reclus, Ravachol, Émile Henry, dentre outros.
Vamos ao texto:
“Minha causa é a causa de nada” (Stirner, 2009: 09), assim Stirner inicia a sua obra. Contudo, o que significa essa máxima? O “nada” de
Stirner, ao menos neste momento do texto original, esconde uma proposição adjacente que pode não
estar explícita. Assim, usando outras palavras, podemos elucidar melhor a sua máxima com “fundei minha causa sobre nada, isto é, nada além de mim mesmo”, ou ainda: "a
minha causa é nada além de mim mesmo". Falando em primeiro pessoa, o que está além do que sou se trata de
algo estranho a mim, algo que busca me alienar em nome de seus interesses. Tais
interesses, Stirner poderia dizer, estão ocultos sob o pretexto de uma causa. Stirner tem aqui como contestação, sobretudo, a alteridade positiva hegeliana: "o outro de mim mesmo" que [pretensiosamente] estende a minha liberdade ao infinito.
Eu - os "eus" de Stirner representam um sujeito irredutível - já deveria ser causa suficiente da minha causa, ou seja,
“Eu” não preciso procurar causas para seguir além das que posso encontrar em
mim mesmo. Todavia, “há tanta coisa a querer ser a minha causa!" (Stirner,
2009: 09). Uma vez inserido nas estruturas simbólicas de uma sociedade, inúmeras ideias
(e o sentido de ideia que Stirner propõe é seriamente importante) esperam que
prestemos honra e devoção, ou que tomemos como nosso objetivo. Essas ideias,
exemplificando brevemente, seriam a causa de Deus, da humanidade, da verdade, da liberdade,
do humanitarismo, da justiça, etc (Stirner, 2009: 09). Tendo isso em mente, Stirner levanta a seguinte questão: o que há por trás destas causas? Seriam elas um pretexto? Ou, mais precisamente: estariam elas (estas ideias) a serviço de algo senão elas mesmas?
Sobre Deus,
que é tudo em tudo (Stirner, 2009: 10), ou seja, alguém determinado, em todas as instâncias, apenas por si mesmo, Stirner desvenda suas pretensões. Deus,
que é uma causa - uma ideia - espera que guardemos esforços para sua empresa,
que estejamos em acordo com suas próprias causas. Quais seriam essas causas, as
causas de Deus? Há quem diga que a causa de Deus é a verdade e o amor, por
exemplo. Ora, o que se deixa passar despercebido é que Deus é, ele mesmo, a
verdade e o amor (Stirner, 2009: 10). Disso se conclui que Deus segue nada senão
ele mesmo. Não haveria, portanto, como Deus seguir uma causa que
fosse estranha à ele: tudo o que Deus é e faz acaba por se dirigir a si
próprio. Em contraste, estamos nós - sujeitos únicos e fundados em nada - que não somos tudo em tudo, que não
possuímos, em nós mesmos, propriedades tão grandiosas, tão onipresentes. Se fôssemos falar da
causa do nosso “Eu”, estaríamos falando de uma causa bem pequena e desprezível. Portanto
(supostamente), devemos procurar uma causa maior, uma causa além de nós mesmos.
Isto é, nós não somos, por si mesmos, suficientes para sermos nossa própria causa;
somos, por assim dizer, carentes de significado suficiente – Stirner, contudo, não pretende aceitar isso. Voltando a falar de Deus, ele conclui:
“Do exposto fica claro que Deus só se preocupa com o que é seu, só se ocupa de si mesmo, só pensa em si e só se vê a si – e ai de tudo aquilo que não cai em suas graças! Ele não serve nenhuma instância superior e só a si se satisfaz. Sua causa é uma causa... puramente egoísta.” (Stirner, 2009: 10).
Deus é o
primeiro exemplo desenvolvido por Stirner no prefácio do Único. Entretanto - apesar de ser uma ideia que Stirner guarda
grande atenção durante seus escritos -, Deus não é a única ideia da qual esperam
nosso respeito e devoção. Há, ainda, como outras, a ideia de humanidade. A causa da humanidade, assim como a de Deus, não é
outra coisa senão ela mesma - um princípio de identidade absoluta, sem alteridade constitutiva. É importante aqui entendermos a humanidade, ou “O
Homem”, como um conceito, algo abstrato, não concreto. Tentarei, com minhas
palavras, elaborar uma explicação para esclarecer o que Stirner pretende: a
humanidade não é o homem mesmo, o “homem de carne e osso” (Stirner usa essa
expressão no Único) do qual carrega unicidades concretas – estas, inconcebíveis por generalizações. A humanidade, ou “O
Homem”, trata-se de um signo, ou palavra, de significado geral, universal. É,
pois, algo abstrato, estranho ao homem em si mesmo, que é único, não-geral, alógico: indizível. A
humanidade, ou “O Homem”, trata-se, na verdade, de um pretexto, de uma causa que,
ao final e ao cabo, serve apenas a si mesma, buscando condicionar o indivíduo
a algo estranho, pois genérico. Tal ideia tenta sufocar as particularidades irredutíveis de um indivíduo em
nome de uma “constante”. Talvez aqui uma aproximação seja possível com Nietzsche, em
Verdade e Mentira em Sentido Extra-Moral,
onde se fala sobre a tendência na filosofia, ou mesmo no costume comum, de
“igualar os desiguais” com vistas a se produzir conceitos. Seja como for, o que está em cheque é a compreensão das
ideias enquanto coisas independentes em certo nível. Uma vez postuladas, elas
ganham “vida própria” e, por assim dizer, escravizam-nos em nome
delas.
Ora, mas as
ideias (ou conceitos, signos, etc) não são convenções humanas? É verdade que
uma ideia só persiste enquanto ela é convencionada e alimentada. Mas, enquanto
o for, ela exerce o seu propósito: engajar forças em nome da sua empresa. Em
princípio, uma ideia desse tipo (Deus, liberdade, Homem, justiça, etc) tinha como propósito servir aos seus "fundadores", por assim dizer. Contudo, após certo período, sua origem
instrumental (como devia ser) é esquecida e acaba por restar apenas a lembrança
de que devemos guardar esforços por ela, tal como se sucede com a sociedade, a pátria, a lei, a
família, o respeito, a humanidade, etc. Posteriormente uma ideia pode
vir a ser revisada, “re-fundamentada”, tal como acontece. Todavia, a
re-fundamentação de uma ideia nunca resgata a sua realidade, o seu "em-si" universal. Por isso, a filosofia, mas não somente ela, busca, em vão, por ideias absolutas que contenham tanta realidade quanto o sujeito. Contudo, como Stirner deixará claro, ideias não são coisas reais, tal como o
é o indivíduo, mas são “fantasmas”, “espectros”, coisa abstrata, puramente
convencional e, portanto, não absolutas. Esse perspectivismo com relação ao reino simbólico atravessa toda a obra de Stirner.
Voltando ao
prefácio do Único, Stirner conclui que as ideias de humanidade, Deus, etc,
estão a serviço apenas delas mesmas: “Nada é a causa de Deus e da humanidade,
nada a não ser eles próprios” (Stirner, 2009: 11). Além disso, esperam nossos
esforços em nome delas. São, logo, egoístas:
tal é o termo que Stirner propõe usar. Ele prossegue:
“Em vez de continuar a servir com altruísmo aqueles grandes egoístas, sou eu próprio o egoísta [...] Eu sou minha causa, eu que, como Deus, sou o nada de todo o resto, eu que sou o meu tudo, eu que sou o único.” (Stirner, 2009: 10).
Se trata
aqui de uma inversão de perspectiva. Usando um plano mais concreto: de um lado
está a autoridade convencionada (ou as ideias), o “sultão” e, do outro, seus
subordinados que devem obediência. Um se preocupa apenas consigo mesmo e usa
tudo ao seu alcance (tal como outras ideias) para legitimar seu cargo e
proveito, o outro guarda devoção e dedicação para com o seu senhor. Um é
egoísta, o outro altruísta. Mas também haverá casos onde o próprio Senhor ou
Sultão é um altruísta, pois os seus subordinados, ou seu povo, também se
apresenta como uma ideia sacralizada, uma ideia da qual deve, ao fim e ao cabo,
obediência.
Tudo o que
foi dito até aqui se trata de uma síntese extremamente superficial da obra.
Talvez Stirner não tenha sido feliz com esse prefácio, que apenas anuncia, de
modo deveras provocativo, o que ele desenvolverá em grande número de páginas.
Em primeira vista, pode parecer visionário ou mesmo trivial. Contudo, no
desenrolar do texto, raciocínios penetrantes evidenciarão descobertas e
edificarão críticas massivas à filosofia moderna. Por exemplo, possivelmente
direcionado a Kant, Stirner fala de uma “boa causa”, semelhante a “boa vontade”
da Fundamentação da Metafísica dos
Costumes (Kant, 2004: 25). Para Stirner, falar de uma causa boa ou má não faz
sentido (Stirner, 2009: 12). Ele nega, portanto, essa dualidade. Quanto ao Único – o personagem vislumbrado por
Stirner – não cabem juízos deste tipo; O Único
funda seu sentido e juízo apenas em si mesmo, como se nele mesmo já fosse
possível encontrar causa suficiente para sua existência. Nada, além dele, exceto por instrumentalização, é
tolerável. O que vem de fora, o que não já é propriedade única do Único, se trata-se de algo estranho, algo
alienador. Ora, mas isso não provocaria um vazio? A negação de um sentido maior
não seria mergulhar em um grande vazio que somos quando condenados a nós
mesmos?
Quando
Stirner diz que “A minha causa é a causa de Nada”, ele não o fala no sentido de
vacuidade. Ele se refere, antes, a um Nada criador (Stirner, 2009: 12). O Único é, essencialmente, um criador. Mas
um criador do qual usa como “matéria-prima” apenas a si mesmo, isto é, nada além
dele deve ser usado como prerrogativa de suas criações, exceto se para tal ele
o usa como, por assim dizer, instrumento. Do contrário, o indivíduo estaria
aceitando ser dominado, aceitando ter sua vida guiada segundo causas estranhas,
causas segundas que são, como Stirner explica, egoístas.
Concluindo o
prefácio, e anunciando as motivações da sua obra, Stirner escreve:
“O divino é a causa de Deus, o humano a causa 'do homem'. Minha causa não é nem o divino nem o humano, não é o verdadeiro, o bom, o justo, o livre etc., mas exclusivamente o que é meu. E esta não é uma causa universal, mas sim... única, tal como eu. [...] Para mim, nada está acima de mim!” (Stirner, 2009: 12).
Benny
Bibliografia
STIRNER, Max. O Único e a Sua
Propriedade. Tradução, glossário e notas de João Barrento. São Paulo:
Martins, 2009.
SAUL NEWMAN. Guerra ao Estado: O Anarquismo de Stirner e Deleuze. Verve, 8:
13-41, 2005.
KANT,
Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos
Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004.
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