As Tendências Analíticas da Inteligência: Bergson, Kant e Wittgenstein.
O autor central para a reflexão é Bergson, pois se trata aqui de encontrar os mecanismos de superação dos quadros cognitivos. Contudo, para poder pensar o que se entende como inteligência na modernidade, Kant parece um ponto de partida central, além do que, como bem sabemos, desde a Crítica, o pensar sofreu reformas de atividade e passou a tomar novos planos de base. Wittgenstein, em nossa leitura, abordando o assunto a partir da linguagem, parece pessimista quanto a superação que Bergson propõe. Mas não devemos tomar conclusões apressadas. Veremos que nos três autores pontos de convergência e, ao mesmo tempo, divergências positivas formam conjunturas interessantes de reflexão.
As Tendências Analíticas da Inteligência
A inteligência, compreendida
enquanto instrumento de análise, e portanto da ação (como será colocado
adiante), está naturalmente voltada para os aspectos práticos da vida. Desta
forma, Bergson tende a compreender a inteligência, ou o entendimento, como um instrumento
pragmático de abstração da realidade, na medida em que recorta, com vistas às
possibilidades de ação, os elementos de interesses relativos ao indivíduo ou à
sociedade. Neste ato, muito antes de conseguir atingir as articulações próprias
da realidade[1],
o indivíduo restringe suas percepções à análise relativa — e aqui temos um
pressuposto central na obra bergsoniana —, pondo de lado o que na realidade haveria
de absoluto ou de substancial às coisas mesmas. Assim, abstrair a realidade por
meio da enumeração de conceitos com finalidades instrumentais, para Bergson,
significa se comprometer com a relatividade do conhecimento que o filósofo,
sobretudo metafísico, acreditava evitar (BERGSON, 2006a, p. 226).
Considerações bergsonianas acerca da
inteligência podem parecer obscuras quando tomadas de início. Para tanto, vale
retomar, na visão bergsoniana, ao que, na Crítica
da Razão Pura, corresponde a uma “fisiologia rationalis” (KANT, 2012, p. 607), ou ainda,
remetendo a Locke, o que o autor da Crítica
chamará, em um dos prefácios, como “fisiologia do entendimento” (KANT, 2012, p. 18). Em todo caso,
quanto a estes conceitos, se trata de traçar o campo e, sobretudo, os limites
da experiência possível segundo a estrutura não da realidade, mas do próprio
entendimento. Não por acaso, em boa parte da obra de Bergson há citações, seja
implícitas ou explícitas, do kantismo que rondava sua época[2] (VIEILLARD-BARON, 2007, p.
12). Havia, por assim dizer, na visão
de Bergson, uma postura de redenção à estrutura do pensamento sustentada por
Kant, de forma que todo o conhecimento possível já estava dado, virtualmente,
segundo as categorias do entendimento. Desta forma, a realidade investigada
pelo filósofo, ou pelo cientista, não manifestaria nada de novo, ou seja, nada
que já não fosse previsto pelos ditames a
priori da razão poderia se apresentar ao espírito cognoscente. A saída, para
Bergson, se tratava, portanto, de revelar o método de uma nova faculdade do
espírito e, além disso, de buscar meios para desobstruir os impasses
intelectuais, tal como os kantianos sustentavam, que impediam o exercício de
uma faculdade ou intuição superior, isto é, uma faculdade cognitiva que
revelaria o que a inteligência, atuando sozinha, negligencia. Para isso, se
pretende, o quanto antes, revisar o que de cognitivo e, por conseguinte, de
linguístico há, na cognição humana, como impedimenta
(BERGSON, 2006a, p. 25) à metafísica e à
vivência espiritual.
Em verdade, Bergson não desconsidera
o relativismo resultante das categorias de enquadramento do entendimento
kantiano: o que ele pretende questionar não é tanto a existência desta
estrutura cognitiva do intelecto, mas a sua impossibilidade de superação.
Assim, logo reconhece e nos diz que “o mérito do kantismo foi o de desenvolver
em todas as suas consequências, e apresentar sob sua forma mais sistemática,
uma ilusão natural. Mas conservou-a; é mesmo sobre ela que o kantismo repousa” (BERGSON, 2006a, p. 72). O erro de
Kant, portanto, foi encerrar sua filosofia sem apostar em uma metafísica que
vai além dos quadros intelectuais da inteligência. A filosofia, segundo Kant,
deve obedecer a “arquitetônica” da razão sem pretender ultrapassá-la. Os
limites da experiência humana, neste caso, já estão previamente dados: o real
já está, por assim dizer, circunscrito
ao entendimento. Mas se, para Kant, a filosofia é refém dos limites cognitivos intrínsecos
ao homem, para Bergson, por outro lado, a filosofia é, muito antes, a atividade
de superação da condição humana (BERGSON, 2006a, p. 225). Superação, portanto,
em seus aspectos cognitivos e linguísticos. Logo, a intenção de Bergson, muito
antes de pretender erradicar os preceitos de uma estrutura inata do
entendimento, se concentra em identificar onde, nas entranhas desta estrutura,
há vazão, ou ainda, reciprocidade entre intuição e intelecção — é neste sentido
que a asserção “superação” deverá operar em prática: entendimento e intuição,
antes incompatíveis, devem agora trabalhar juntos. Para edificar este
raciocínio, a intelecção, concernente ao trabalho rígido e conceitual da
inteligência, se pressupõe que ainda permita alguma flexibilidade (BERGSON, 2006a, p. 40), na medida em
que, para o nosso autor, ainda é possível, conceitualmente, representar de modo
provisório[3] a
fluidez encontrada na realidade movente do real — Bergson fala, neste caso
particular, no uso de “conceitos flexíveis” e imagens (BERGSON, 2006a, p. 195). A inteligência
com seu modus operandi, portanto,
ainda é instrumento central, só que com os seus modos reformados. Antes de
buscar ideias gerais e por demais abstratas, deve-se então buscar o que, na
linguagem, se adequa às articulações naturais das coisas e, sobretudo, à sua
mobilidade. No primeiro caso exige-se uma revisão dos conceitos científicos,
pois estes são relativos à matéria; no segundo, por outro lado, exige-se uma
disposição intuitiva do espírito, que será a tarefa da nova metafísica. Ciência
e metafísica aqui se distinguem por objeto e método ao mesmo tempo em que
encontram um ponto de convergência: ambas devem, agora, se adequar à
experiência (BERGSON, 2006a, p. 47).
O que se deve evitar, em todo caso,
é uma disposição contrária ao devir da experiência. Em grande medida, a ciência
teve o hábito de partir de conceitos gerais previamente lançados pela linguagem
para só então interpretar dados empíricos (BERGSON, 2006a, p. 226). Contudo, como
se deve lembrar, a linguagem procura atender, o quanto antes, às exigências
sociais e fins práticos, para não dizer que já contém, em sua estrutura mesma,
os limites da própria experiência. Wittgenstein, nesta perspectiva, se aproxima
de Bergson, na medida em que compreende a linguagem, ou melhor, os jogos de
linguagem, como um condicionamento, ou ainda, um “enfeitiçamento” intelectual
do ser humano (WITTGENSTEIN, 2005, §109). Dentre as
consequências de não reconhecer esse estatuto da linguagem, a filosofia, tanto
para Bergson quanto para Wittgenstein, se restringiu em tentar resolver
problemas que a própria linguagem engendra em seu percurso lógico, causando
uma verdadeira paralisia na tentativa de resolução de problemas inexistentes,
ou ainda, falsos problemas. Isto tudo ocorre porque a linguagem, munida ela
mesma de suas prescrições epistêmicas e normativas, adianta os seus próprios
problemas, mobilizando a comunidade filosófica — e em certa medida também a
científica — para as suas querelas operacionais intrínsecas. Enquanto isso, a
realidade, ela mesma, permanece intocada, aguardando que o filósofo, com uma
nova atitude, se volte para o que a experiência tem a oferecer. O movimento
habitual do filósofo, portanto, ao desacreditar da experiência, consiste em
achar que “estes problemas não são solucionados pelo ensino de uma nova
experiência, mas pela combinação [análise] do que há muito já se conhece”.
Assim, dando um passo atrás, e pensando a filosofia com um novo estatuto,
Wittgenstein conclui: “a filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de nosso
intelecto pelos meios de nossa linguagem” (WITTGENSTEIN, 2005, §109).
Disto se segue que um projeto com
vistas à superação da condição humana, muito mais que identificar problemas
essencialmente linguísticos, deve pretender ultrapassar os limites da “letra”
ou, mais especificamente, elaborar um método que evite o condicionamento por
ela (a linguagem) e que possibilite, em vez disso, condicioná-la (à experiência).
Neste ponto, bem sabemos, Bergson se distancia de Wittgenstein, e também de
Kant, na medida em que aposta num método capaz de dar conta das limitações que
a linguagem usual impele.
A inteligência, neste contexto, não
deve ser entendida estritamente como uma instância artificial — se por artificial
compreendemos algo que não se encontra nas disposições naturais do indivíduo —,
mas sim como algo de procedência, ou significação, vital (BERGSON, 2006a, p. 44, 57; COELHO, 2001, p. 9). É no próprio
princípio da vida, ou melhor, em sua evolução, que a inteligência encontra sua
razão de ser. A inteligência é para o ser humano o que o instinto, enquanto
orientador da ação, é para os animais: ambos operam generalizações com vistas a
agir (BERGSON, 2006a, p. 58). A diferença,
para Bergson, entre estes dois domínios da prática vital, não é tanto de
natureza, mas de grau, pois suas origens não poderiam escapar às exigências
fundamentais da vida e da ação (BERGSON, 2005, p. 165). No caso dos
animais, o instinto se distingue apresentando um protocolo de ação dado, isto
é, pouco mediado, enquanto que nos humanos a inteligência permite vislumbrar um
grande número de ações possíveis; ou ainda, no caso da posse de um novo método,
muito mais do que ações possíveis: “um ser inteligente traz consigo os meios
necessários para superar-se a si mesmo” (BERGSON, 2005, p. 164). Saibamos que, em
ambos os casos, seja a inteligência ou o instinto, se trata, afinal de contas,
de como agir. Mas, retomando a atividade de superação que Bergson propõe, vale
ainda uma segunda atitude da inteligência, uma atitude que só se revela de modo
explícito[4]
quando a mesma não pretende agir, isto é, quando pretende se voltar para o
espírito. Esta segunda atitude, da qual
a inteligência reserva uma certa elasticidade (BERGSON, 2006a, p. 40), só se faz
possível com a luz de outra faculdade, a intuitiva, do contrário nossa
inteligência permaneceria voltada para a matéria, objeto para o qual ela existe
e facilmente se adequa. Esta atitude, contudo, não se manifesta sem o subsídio
da faculdade intuitiva, do contrário terá de, novamente, lidar com os impedimentos
linguísticos inerentes da intelecção. Logo, tendo profundo conhecimento destas
dificuldades, e dispondo de um novo modo de operação do pensamento, Bergson,
diferentemente de Wittgenstein, aposta em uma outra via, uma que pretende de
certo modo ultrapassar — ou “passar-se” (BERGSON, 2006a, p. 188) — a linguagem e
outros modos de tradução realizados pelas faculdades do entendimento. É esta a
via que pretende, enfim, como dirá nosso autor ao final da Introdução a Metafísica, alcançar a “experiência integral” (BERGSON, 2006a, p. 234).
“Desobstrução” (déblaiment) é um dos termos que nosso autor emprega nesta abordagem.
O filósofo, portanto, deve se preocupar em elucidar os meios pelos quais se faz
possível “limpar” os impedimentas do
entendimento para, então, “tocar” o espírito pelo espírito e, nesta medida,
encontrar o Absoluto, neste caso, o da filosofia, o absoluto do espírito. Nesta
medida, o Absoluto para Bergson é o que outros filósofos, no decorrer da
tradição filosófica, costumaram chamar de “essência das coisas”. Ora, Bergson,
curiosamente, preferiu o termo usado por Schelling. Se não se pretende um ou
outro termo, deve-se saber que o que está em jogo afinal é tocar a realidade
interior das coisas, por meio de uma atitude de simpatia (BERGSON, 2006a, p. 183), isto é, uma
atitude que tem por função coincidir com as particularidades de um objeto (COELHO, 1999, p. 157), erradicando as
mediações interpostas entre o espírito e a realidade. Deste ponto de vista, a
atitude intuitiva do filósofo, uma vez que preza pela intimidade particular dos
eventos — em contraposição aos modos interessados, mediados e generalizantes da
inteligência —, sugere como que um retorno aos modos primitivos, isto é, ao que
Bergson, em uma obra de juventude, defende como os dados imediatos da percepção
humana: fatos psíquicos que são “pura qualidade” (BERGSON, 2011, p. 154). Não se deve,
neste percurso, contudo, negligenciar os imperativos, isto é, o intrometimento
habitual da inteligência, pois nossa condição vital está, a princípio,
subordinada a esta. Desta forma, faz-se necessária uma avaliação crítica dos
modos naturais da inteligência, buscando encontrar suas lacunas, seus
mecanismos de vazão, ou melhor, e como já foi dito, sua elasticidade; encontrar,
portanto, os impedimentas do método
intuitivo, isto é, os elementos do entendimento que impedem o avanço da
filosofia e da ciência, são eles as exigências práticas e sociais, os modos
operacionais da linguagem e, em última instância, da natureza do entendimento (BERGSON, 2006a, p. 77): tais são os
objetos de obstrução que o filósofo e cientista (sobretudo o primeiro) terão de
enfrentar.
O primeiro impedimenta está relacionado às utilidades da vida social, isto é,
ao que, na ação, o indivíduo encontra de relevante para os interesses práticos
daquela. Não obstante, este impedimenta, regrado
pelos hábitos do senso comum (BERGSON, 2006a, p. 7), já realiza seus modos naturais na
linguagem: são nos problemas de ordem prática e social que a linguagem encontra
o seu enquadramento e, portanto, que está naturalmente inclinada. A
inteligência, ela mesma, se modelou, em seu princípio, pela estrutura da
matéria. Aqui encontramos uma ponte de origem entre linguagem e ordem prática e
social da vida: ambas obedecem à natureza biológica de um cérebro que preza
pela atenção à vida (BERGSON, 2006a, p. 83). Ambas estão
condicionadas uma pela outra, na medida em que orientam a vida consciente para
agir. Ora, mas a vida especulativa a qual o filósofo deve se empregar está,
todavia, situada em outro nível, em um nível de menor tensão da vida
consciente, onde os impulsos para agir são menos imperativos e abrem espaço
para tocar um inconsciente psicológico[5] (BERGSON, 2006a, p. 29). Em Matéria e Memória (BERGSON, 2006b, p. 190), Bergson fornece uma interessante, e
metafórica, explicação geométrica deste imbricado mecanismo. A vida consciente,
em sua tensão máxima, pronta para agir e inclinadamente inserida para o mundo
material, é representada pela ponta de um cone ao qual, em sua base, mais larga
e frouxa, se encontra o âmbito especulativo. Na medida em que os dois lados do
cone, desde a sua base, se direcionam, por afunilamento, para um ponto em comum
— um ponto de alta tensão como Bergson entende —, se exigiria um esforço
significativo para a direção contrária, isto é, para a direção “frouxa” da
consciência. Este âmbito, onde a consciência abre espaço para intensas
rememorações ao mesmo tempo em que se distancia da vida prática, não representa
a inclinação natural do ser humano, que é a de atenção à vida. Logo, a atitude desobstrutiva do filósofo deve,
muito antes, buscar fugir ao afunilamento deste cone, buscando suas bases onde
a intuição pode, mais livremente, isto é, sem os necessários ditames da
linguagem e da praticidade, se inserir no absoluto, na livre mobilidade do
espírito. É compreendendo, e também aceitando, a mobilidade do real e do
espírito, que a faculdade intuitiva pode exercer o seu papel. Do contrário,
isto é, se inserindo na percepção imóvel e distintiva da inteligência — esta,
que encontra sua maior utilidade na consciência tensionada — o filósofo estará,
novamente, operando os hábitos analíticos aos quais sua natureza, sua atenção à
vida, o impele (BERGSON, 2006a, p. 57).
Podemos, de certa forma, reunir, ou
reduzir de maneira metódica, todos estes impedimentas
à natureza do entendimento, que é fonte natural da análise (BERGSON, 2006a, p. 7). Recortar,
separar, distinguir, enumerar, justapor: tais são os modos que o entendimento,
fonte natural da vida prática, se propõe a fazer. Mas não podemos deixar de ver
o que, em especial, a linguagem, que também é munida do entendimento e resultante
dele, é capaz de provocar. Desta, nasce os problemas filosóficos que mais
tomaram tempo na história da filosofia. Não é por menos que se fala em
problemas oriundos da maneira de operar a linguagem. Wittgenstein nos fornece
exemplos e modos pelos quais a linguagem chega a tomar falsos problemas como da
mais alta importância (WITTGENSTEIN, 2005, §111), de forma a se
aproximar intimamente de Bergson em pontos sobre a homogeneidade da linguagem
física — espacializada, como Bergson diria — e a heterogeneidade do real (NETO, 2005, p. 49). A linguagem,
portanto, tão como o entendimento de onde é fonte, é um impedimenta que exige atenção especial do filósofo. Mas não só, é
verdade, uma atenção negativa, de crítica, mas também de reforma positiva. Não
bastará, ao filósofo, atingir a intuição, é preciso também saber comunicá-la.
E, de nenhum modo, Bergson considera isso ser possível sem linguagem. Para
tanto, Bergson nos fala de uma linguagem imagética, ou, em outros momentos, de
conceitos fluidos ou flexíveis. Em todo caso, será a atitude de se colocar na
experiência que permitirá estes novos modos de portar a linguagem, de ir das
coisas ao conceito, de inverter, portanto, a direção habitual do trabalho do
pensamento (BERGSON, 2006a, p. 221).
Inspirado por Bergson, Georges
Canguilhem, outro filósofo francês, bem identificou um problema corrente na
ciência, qual seja, a de se importar conceitos provenientes da técnica, coisa
da alçada da análise, para a experiência do cientista (CANGUILHEM, 2012, p. 15). É o que
Bergson costuma dizer a respeito do movimento habitual do pensamento: partir de
ideias prontas ou conceitos práticos, em vez de partir da própria experiência,
em seus próprios termos e articulações. A ocorrência deste hábito se faz um
problema importante, sobretudo, devemos dizer, respeitante às ciências
biológicas, que tem como objeto não o mundo desorganizado e inerte, mas o mundo
orgânico, o qual carrega, segundo Bergson, um princípio vital e organizador[6]
que a matéria inorgânica se abstém. O filósofo, tal como o cientista, ainda
tende, portanto, aos imperativos da análise quantitativa, quando na verdade
devia, em primeira mão, se colocar no que de qualitativo a experiência tem a
oferecer (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 56-61). O conceito, a
análise e, portanto, o discurso científico e filosófico, deve, muito antes de
enunciar suas descobertas e teorias, voltar os olhos para experiência. O
contrário significaria observar a experiência munindo-se das prescrições da linguagem e do
entendimento, coisa de ordem essencialmente relativa, subordinada, como já foi
dito, aos quadros conceituais e cognitivos, e não à coisa investigada. Neste último
caso, não é, portanto, o conceito que se adequa à experiência, mas sim a experiência
que se adequa ao conceito — principalmente ao conceito técnico, como dito acima
pela leitura de Canguilhem. Por esta via, a linguagem nunca poderia abarcar o
real, exceto relativamente ao que o entendimento julga e recorta
antecipadamente. Assim, sabendo o que Kant empreitou, Bergson está preocupado,
sobretudo, com os limites da experiência possível que o entendimento insiste,
por ordem natural, a estabelecer (KANT, 2012, p. 17). Isto é, antes
mesmo da experiência, para a ciência que se encontra enclausurada pela análise,
todo o real possível já está dado, de tal forma que a experiência nada terá a
oferecer além de confirmar aquilo que os conceitos já prescreveram. Devemos
saber que o possível e o real atendem, contudo, a ontologias diferentes: um diz
respeito ao entendimento, isto é, aos limites que a inteligência traça para a
percepção da realidade; o outro, radicalmente diferente, mas não incompatível, é
pura imprevisibilidade (BERGSON, 2006a, p.103), ultrapassa o
conjunto das experiências possíveis que a inteligência tende a estabelecer a priori.
Em conclusão, devemos ter claro que
Bergson não é um tipo irracionalista, nem mesmo, como poderíamos conjecturar,
um adversário da ciência. Muito antes, o que Bergson tem realmente em mente é a
tentativa de reconciliar um elo perdido, uma fronteira que tornaram rígida
demais para conciliações colaborativas. É uma metafísica positiva, fundada nos
fatos (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 76), que Bergson pretende construir. Para tanto,
metafísica e ciência devem permanecer lado a lado, operando critérios
conjuntos, ou mesmo se provando uma a outra. Ele vai, inclusive, além e nos
diz: “...queríamos uma filosofia que se submetesse ao controle da ciência e que
pudesse também fazê-la avançar” (BERGSON, 2006a, p.73). Neste sentido, nosso autor nos fala de uma
“metafísica da ciência” que já estaria implícita entre os grandes cientistas, e
que já é, frequentemente, “sua invisível inspiradora” (BERGSON, 2006a, p. 184). Esta atitude filosófica não seria novidade,
pois o próprio Bergson, em obras como Matéria
e Memória, já opera um trabalho conjunto com a ciência — nesta obra, em
especial, com a psicofísica — citando e reinterpretando dados científicos
coletados acerca das afasias. De fato, esta forma de elaborar textos
filosóficos fornece uma experiência muito gratificante para quem lê, na medida
em que se percebe uma filosofia ciente da ciência de sua época, que não se
enclausura em uma racionalidade fechada, mas que pensa, sobretudo, em um
trabalho conjunto (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 75). Análise e intuição, portanto, não mais devem
ser pensadas como uma antinomia inconciliável, o mesmo valendo para metafísica
e ciência. Esta nova abordagem talvez nos permitiria pensar, com mais afinco e
precisão, o que a filosofia tem a dizer sobre as “intuições pré-analíticas”[7]
dos cientistas (ABRANTES, 2013, p. 124). Neste sentido, o aparente irracionalismo na
geração de teorias científicas, na medida em que nos parece sugerir uma
criatividade incondicionada, talvez possa revelar, finalmente, uma
racionalidade (intuitiva) a se investigar. Talvez, a faculdade intuitiva, tão
invisibilizada pela história da filosofia, tenha sido, sem nos deixar perceber,
uma companheira propulsora de longa data, fornecendo o subsídio iluminador da
inteligência e das novas formas que esta cria. Falta-nos, contudo,
reconhecê-la, fazê-la manifestar. Para Bergson, as nossas faculdades cognitivas
não se encerram nas estruturas da inteligência: a inteligência é aqui apenas
uma pista de pouso onde faculdades superiores, e irreverentes enquanto
permanecem nelas mesmas, podem descer para comunicar, com a linguagem
filosófica e científica, novas instâncias não percebidas da realidade.
- Benny
[1]
Nosso autor também fala de
“seccionamento natural das coisas” (BERGSON,
2006a, p. 55). Propomos aqui que isso se
entenda, também, e de maneira metafórica, como as “juntas” (no sentido
anatômico) próprias da realidade.
[2]
O próprio Bergson chama a
atenção para um dogmatismo kantiano presente em sua época já na primeira nota
de rodapé do texto Introdução à
Metafísica (BERGSON, 2006a,
p. 184).
[3]
Para Bergson, é impossível
representar, na concepção otimista do termo, a realidade intrínseca, isto é, o
absoluto. Em vez disso, conceitos e imagens apenas direcionam, ou melhor,
apontam o caminho para que o espírito filosófico, ele mesmo, proceda no esforço
intuitivo necessário para tocar a realidade (BERGSON,
2006a, p. 183).
[4]
É importante notar, como
iremos ver adiante neste texto, que Bergson não desconsidera a operação dessa
faculdade intuitiva, por exemplo, atuando implicitamente nas descobertas
científicas. É a intuição do cientista, neste caso, indo das coisas aos
conceitos, que possibilita a geração de novas teorias. Ver a primeira nota de
rodapé de Introdução à Metafísica, onde
Bergson fala de uma “invisível inspiradora” da ciência (BERGSON,
2006a, p. 184). Ver também sobre a espontaneidade
da intuição em Coelho (1999,
p. 152).
[5]
Em diversos textos de
Berson, e não menos na coletânea de textos de O Pensamento e o Movente, há um âmbito da vida psicológica que
Bergson chamará inconsciente. Aqui não devemos deixar nos confundir com o
inconsciente que a psicologia, sobretudo freudiana, vem a empregar. O
inconsciente bergsoniano possui um estatuto espiritual, na medida em que a
consciência é da alçada material, isto é, do que o cérebro converge para a
ação.
[6] Ver, por exemplo, o conceito de elã vital (BERGSON, 2005,
p. 95-106). Há, no pensamento de Bergson,
um vitalismo que percorre toda a sua obra.
[7]
Em seu capítulo sobre
metametodologias, o professor Abrantes busca mostrar a importância que é, em
uma abordagem “intuicionista” em filosofia da ciência, explicar as intuições
pré-analíticas dos cientistas a fim de se estabelecer critérios razoáveis de
uma boa ciência (ABRANTES,
2013, p. 122).
Bibliografia
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e Ciência: Uma Abordagem Filosófica. Belo Horizonte, MG: Fino Traço,
2013.
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J.-L. Comprender Bergson. Petrópolis: Vozes, 2007.
WITTGENSTEIN, L. Investigações
Filosóficas. 5a ed. São Paulo: Vozes, 2005.
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