As Tendências Analíticas da Inteligência: Bergson, Kant e Wittgenstein.



O autor central para a reflexão é Bergson, pois se trata aqui de encontrar os mecanismos de superação dos quadros cognitivos. Contudo, para poder pensar o que se entende como inteligência na modernidade, Kant parece um ponto de partida central, além do que, como bem sabemos, desde a Crítica, o pensar sofreu reformas de atividade e passou a tomar novos planos de base. Wittgenstein, em nossa leitura, abordando o assunto a partir da linguagem, parece pessimista quanto a superação que Bergson propõe. Mas não devemos tomar conclusões apressadas. Veremos que nos três autores pontos de convergência e, ao mesmo tempo, divergências positivas formam conjunturas interessantes de reflexão.           

As Tendências Analíticas da Inteligência

A inteligência, compreendida enquanto instrumento de análise, e portanto da ação (como será colocado adiante), está naturalmente voltada para os aspectos práticos da vida. Desta forma, Bergson tende a compreender a inteligência, ou o entendimento, como um instrumento pragmático de abstração da realidade, na medida em que recorta, com vistas às possibilidades de ação, os elementos de interesses relativos ao indivíduo ou à sociedade. Neste ato, muito antes de conseguir atingir as articulações próprias da realidade[1], o indivíduo restringe suas percepções à análise relativa — e aqui temos um pressuposto central na obra bergsoniana —, pondo de lado o que na realidade haveria de absoluto ou de substancial às coisas mesmas. Assim, abstrair a realidade por meio da enumeração de conceitos com finalidades instrumentais, para Bergson, significa se comprometer com a relatividade do conhecimento que o filósofo, sobretudo metafísico, acreditava evitar (BERGSON, 2006a, p. 226).
           
Considerações bergsonianas acerca da inteligência podem parecer obscuras quando tomadas de início. Para tanto, vale retomar, na visão bergsoniana, ao que, na Crítica da Razão Pura, corresponde a uma “fisiologia rationalis(KANT, 2012, p. 607), ou ainda, remetendo a Locke, o que o autor da Crítica chamará, em um dos prefácios, como “fisiologia do entendimento” (KANT, 2012, p. 18). Em todo caso, quanto a estes conceitos, se trata de traçar o campo e, sobretudo, os limites da experiência possível segundo a estrutura não da realidade, mas do próprio entendimento. Não por acaso, em boa parte da obra de Bergson há citações, seja implícitas ou explícitas, do kantismo que rondava sua época[2] (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 12). Havia, por assim dizer, na visão de Bergson, uma postura de redenção à estrutura do pensamento sustentada por Kant, de forma que todo o conhecimento possível já estava dado, virtualmente, segundo as categorias do entendimento. Desta forma, a realidade investigada pelo filósofo, ou pelo cientista, não manifestaria nada de novo, ou seja, nada que já não fosse previsto pelos ditames a priori da razão poderia se apresentar ao espírito cognoscente. A saída, para Bergson, se tratava, portanto, de revelar o método de uma nova faculdade do espírito e, além disso, de buscar meios para desobstruir os impasses intelectuais, tal como os kantianos sustentavam, que impediam o exercício de uma faculdade ou intuição superior, isto é, uma faculdade cognitiva que revelaria o que a inteligência, atuando sozinha, negligencia. Para isso, se pretende, o quanto antes, revisar o que de cognitivo e, por conseguinte, de linguístico há, na cognição humana, como impedimenta (BERGSON, 2006a, p. 25) à metafísica e à vivência espiritual.
            
Em verdade, Bergson não desconsidera o relativismo resultante das categorias de enquadramento do entendimento kantiano: o que ele pretende questionar não é tanto a existência desta estrutura cognitiva do intelecto, mas a sua impossibilidade de superação. Assim, logo reconhece e nos diz que “o mérito do kantismo foi o de desenvolver em todas as suas consequências, e apresentar sob sua forma mais sistemática, uma ilusão natural. Mas conservou-a; é mesmo sobre ela que o kantismo repousa” (BERGSON, 2006a, p. 72). O erro de Kant, portanto, foi encerrar sua filosofia sem apostar em uma metafísica que vai além dos quadros intelectuais da inteligência. A filosofia, segundo Kant, deve obedecer a “arquitetônica” da razão sem pretender ultrapassá-la. Os limites da experiência humana, neste caso, já estão previamente dados: o real já está, por assim dizer, circunscrito ao entendimento. Mas se, para Kant, a filosofia é refém dos limites cognitivos intrínsecos ao homem, para Bergson, por outro lado, a filosofia é, muito antes, a atividade de superação da condição humana (BERGSON, 2006a, p. 225). Superação, portanto, em seus aspectos cognitivos e linguísticos. Logo, a intenção de Bergson, muito antes de pretender erradicar os preceitos de uma estrutura inata do entendimento, se concentra em identificar onde, nas entranhas desta estrutura, há vazão, ou ainda, reciprocidade entre intuição e intelecção — é neste sentido que a asserção “superação” deverá operar em prática: entendimento e intuição, antes incompatíveis, devem agora trabalhar juntos. Para edificar este raciocínio, a intelecção, concernente ao trabalho rígido e conceitual da inteligência, se pressupõe que ainda permita alguma flexibilidade (BERGSON, 2006a, p. 40), na medida em que, para o nosso autor, ainda é possível, conceitualmente, representar de modo provisório[3] a fluidez encontrada na realidade movente do real — Bergson fala, neste caso particular, no uso de “conceitos flexíveis” e imagens (BERGSON, 2006a, p. 195). A inteligência com seu modus operandi, portanto, ainda é instrumento central, só que com os seus modos reformados. Antes de buscar ideias gerais e por demais abstratas, deve-se então buscar o que, na linguagem, se adequa às articulações naturais das coisas e, sobretudo, à sua mobilidade. No primeiro caso exige-se uma revisão dos conceitos científicos, pois estes são relativos à matéria; no segundo, por outro lado, exige-se uma disposição intuitiva do espírito, que será a tarefa da nova metafísica. Ciência e metafísica aqui se distinguem por objeto e método ao mesmo tempo em que encontram um ponto de convergência: ambas devem, agora, se adequar à experiência (BERGSON, 2006a, p. 47).
            
O que se deve evitar, em todo caso, é uma disposição contrária ao devir da experiência. Em grande medida, a ciência teve o hábito de partir de conceitos gerais previamente lançados pela linguagem para só então interpretar dados empíricos (BERGSON, 2006a, p. 226). Contudo, como se deve lembrar, a linguagem procura atender, o quanto antes, às exigências sociais e fins práticos, para não dizer que já contém, em sua estrutura mesma, os limites da própria experiência. Wittgenstein, nesta perspectiva, se aproxima de Bergson, na medida em que compreende a linguagem, ou melhor, os jogos de linguagem, como um condicionamento, ou ainda, um “enfeitiçamento” intelectual do ser humano (WITTGENSTEIN, 2005, §109). Dentre as consequências de não reconhecer esse estatuto da linguagem, a filosofia, tanto para Bergson quanto para Wittgenstein, se restringiu em tentar resolver problemas que a própria linguagem ­engendra em seu percurso lógico, causando uma verdadeira paralisia na tentativa de resolução de problemas inexistentes, ou ainda, falsos problemas. Isto tudo ocorre porque a linguagem, munida ela mesma de suas prescrições epistêmicas e normativas, adianta os seus próprios problemas, mobilizando a comunidade filosófica — e em certa medida também a científica — para as suas querelas operacionais intrínsecas. Enquanto isso, a realidade, ela mesma, permanece intocada, aguardando que o filósofo, com uma nova atitude, se volte para o que a experiência tem a oferecer. O movimento habitual do filósofo, portanto, ao desacreditar da experiência, consiste em achar que “estes problemas não são solucionados pelo ensino de uma nova experiência, mas pela combinação [análise] do que há muito já se conhece”. Assim, dando um passo atrás, e pensando a filosofia com um novo estatuto, Wittgenstein conclui: “a filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagem” (WITTGENSTEIN, 2005, §109).
            
Disto se segue que um projeto com vistas à superação da condição humana, muito mais que identificar problemas essencialmente linguísticos, deve pretender ultrapassar os limites da “letra” ou, mais especificamente, elaborar um método que evite o condicionamento por ela (a linguagem) e que possibilite, em vez disso, condicioná-la (à experiência). Neste ponto, bem sabemos, Bergson se distancia de Wittgenstein, e também de Kant, na medida em que aposta num método capaz de dar conta das limitações que a linguagem usual impele.
            
A inteligência, neste contexto, não deve ser entendida estritamente como uma instância artificial — se por artificial compreendemos algo que não se encontra nas disposições naturais do indivíduo —, mas sim como algo de procedência, ou significação, vital (BERGSON, 2006a, p. 44, 57; COELHO, 2001, p. 9). É no próprio princípio da vida, ou melhor, em sua evolução, que a inteligência encontra sua razão de ser. A inteligência é para o ser humano o que o instinto, enquanto orientador da ação, é para os animais: ambos operam generalizações com vistas a agir (BERGSON, 2006a, p. 58). A diferença, para Bergson, entre estes dois domínios da prática vital, não é tanto de natureza, mas de grau, pois suas origens não poderiam escapar às exigências fundamentais da vida e da ação (BERGSON, 2005, p. 165). No caso dos animais, o instinto se distingue apresentando um protocolo de ação dado, isto é, pouco mediado, enquanto que nos humanos a inteligência permite vislumbrar um grande número de ações possíveis; ou ainda, no caso da posse de um novo método, muito mais do que ações possíveis: “um ser inteligente traz consigo os meios necessários para superar-se a si mesmo” (BERGSON, 2005, p. 164). Saibamos que, em ambos os casos, seja a inteligência ou o instinto, se trata, afinal de contas, de como agir. Mas, retomando a atividade de superação que Bergson propõe, vale ainda uma segunda atitude da inteligência, uma atitude que só se revela de modo explícito[4] quando a mesma não pretende agir, isto é, quando pretende se voltar para o espírito.  Esta segunda atitude, da qual a inteligência reserva uma certa elasticidade (BERGSON, 2006a, p. 40), só se faz possível com a luz de outra faculdade, a intuitiva, do contrário nossa inteligência permaneceria voltada para a matéria, objeto para o qual ela existe e facilmente se adequa. Esta atitude, contudo, não se manifesta sem o subsídio da faculdade intuitiva, do contrário terá de, novamente, lidar com os impedimentos linguísticos inerentes da intelecção. Logo, tendo profundo conhecimento destas dificuldades, e dispondo de um novo modo de operação do pensamento, Bergson, diferentemente de Wittgenstein, aposta em uma outra via, uma que pretende de certo modo ultrapassar — ou “passar-se” (BERGSON, 2006a, p. 188) — a linguagem e outros modos de tradução realizados pelas faculdades do entendimento. É esta a via que pretende, enfim, como dirá nosso autor ao final da Introdução a Metafísica, alcançar a “experiência integral” (BERGSON, 2006a, p. 234).
           
“Desobstrução” (déblaiment) é um dos termos que nosso autor emprega nesta abordagem. O filósofo, portanto, deve se preocupar em elucidar os meios pelos quais se faz possível “limpar” os impedimentas do entendimento para, então, “tocar” o espírito pelo espírito e, nesta medida, encontrar o Absoluto, neste caso, o da filosofia, o absoluto do espírito. Nesta medida, o Absoluto para Bergson é o que outros filósofos, no decorrer da tradição filosófica, costumaram chamar de “essência das coisas”. Ora, Bergson, curiosamente, preferiu o termo usado por Schelling. Se não se pretende um ou outro termo, deve-se saber que o que está em jogo afinal é tocar a realidade interior das coisas, por meio de uma atitude de simpatia (BERGSON, 2006a, p. 183), isto é, uma atitude que tem por função coincidir com as particularidades de um objeto (COELHO, 1999, p. 157), erradicando as mediações interpostas entre o espírito e a realidade. Deste ponto de vista, a atitude intuitiva do filósofo, uma vez que preza pela intimidade particular dos eventos — em contraposição aos modos interessados, mediados e generalizantes da inteligência —, sugere como que um retorno aos modos primitivos, isto é, ao que Bergson, em uma obra de juventude, defende como os dados imediatos da percepção humana: fatos psíquicos que são “pura qualidade” (BERGSON, 2011, p. 154). Não se deve, neste percurso, contudo, negligenciar os imperativos, isto é, o intrometimento habitual da inteligência, pois nossa condição vital está, a princípio, subordinada a esta. Desta forma, faz-se necessária uma avaliação crítica dos modos naturais da inteligência, buscando encontrar suas lacunas, seus mecanismos de vazão, ou melhor, e como já foi dito, sua elasticidade; encontrar, portanto, os impedimentas do método intuitivo, isto é, os elementos do entendimento que impedem o avanço da filosofia e da ciência, são eles as exigências práticas e sociais, os modos operacionais da linguagem e, em última instância, da natureza do entendimento (BERGSON, 2006a, p. 77): tais são os objetos de obstrução que o filósofo e cientista (sobretudo o primeiro) terão de enfrentar.
            
O primeiro impedimenta está relacionado às utilidades da vida social, isto é, ao que, na ação, o indivíduo encontra de relevante para os interesses práticos daquela. Não obstante, este impedimenta, regrado pelos hábitos do senso comum (BERGSON, 2006a, p. 7), já realiza seus modos naturais na linguagem: são nos problemas de ordem prática e social que a linguagem encontra o seu enquadramento e, portanto, que está naturalmente inclinada. A inteligência, ela mesma, se modelou, em seu princípio, pela estrutura da matéria. Aqui encontramos uma ponte de origem entre linguagem e ordem prática e social da vida: ambas obedecem à natureza biológica de um cérebro que preza pela atenção à vida (BERGSON, 2006a, p. 83). Ambas estão condicionadas uma pela outra, na medida em que orientam a vida consciente para agir. Ora, mas a vida especulativa a qual o filósofo deve se empregar está, todavia, situada em outro nível, em um nível de menor tensão da vida consciente, onde os impulsos para agir são menos imperativos e abrem espaço para tocar um inconsciente psicológico[5] (BERGSON, 2006a, p. 29). Em Matéria e Memória (BERGSON, 2006b, p. 190), Bergson fornece uma interessante, e metafórica, explicação geométrica deste imbricado mecanismo. A vida consciente, em sua tensão máxima, pronta para agir e inclinadamente inserida para o mundo material, é representada pela ponta de um cone ao qual, em sua base, mais larga e frouxa, se encontra o âmbito especulativo. Na medida em que os dois lados do cone, desde a sua base, se direcionam, por afunilamento, para um ponto em comum — um ponto de alta tensão como Bergson entende —, se exigiria um esforço significativo para a direção contrária, isto é, para a direção “frouxa” da consciência. Este âmbito, onde a consciência abre espaço para intensas rememorações ao mesmo tempo em que se distancia da vida prática, não representa a inclinação natural do ser humano, que é a de atenção à vida. Logo, a atitude desobstrutiva do filósofo deve, muito antes, buscar fugir ao afunilamento deste cone, buscando suas bases onde a intuição pode, mais livremente, isto é, sem os necessários ditames da linguagem e da praticidade, se inserir no absoluto, na livre mobilidade do espírito. É compreendendo, e também aceitando, a mobilidade do real e do espírito, que a faculdade intuitiva pode exercer o seu papel. Do contrário, isto é, se inserindo na percepção imóvel e distintiva da inteligência — esta, que encontra sua maior utilidade na consciência tensionada — o filósofo estará, novamente, operando os hábitos analíticos aos quais sua natureza, sua atenção à vida, o impele (BERGSON, 2006a, p. 57).
           
Podemos, de certa forma, reunir, ou reduzir de maneira metódica, todos estes impedimentas à natureza do entendimento, que é fonte natural da análise (BERGSON, 2006a, p. 7). Recortar, separar, distinguir, enumerar, justapor: tais são os modos que o entendimento, fonte natural da vida prática, se propõe a fazer. Mas não podemos deixar de ver o que, em especial, a linguagem, que também é munida do entendimento e resultante dele, é capaz de provocar. Desta, nasce os problemas filosóficos que mais tomaram tempo na história da filosofia. Não é por menos que se fala em problemas oriundos da maneira de operar a linguagem. Wittgenstein nos fornece exemplos e modos pelos quais a linguagem chega a tomar falsos problemas como da mais alta importância (WITTGENSTEIN, 2005, §111), de forma a se aproximar intimamente de Bergson em pontos sobre a homogeneidade da linguagem física — espacializada, como Bergson diria — e a heterogeneidade do real (NETO, 2005, p. 49). A linguagem, portanto, tão como o entendimento de onde é fonte, é um impedimenta que exige atenção especial do filósofo. Mas não só, é verdade, uma atenção negativa, de crítica, mas também de reforma positiva. Não bastará, ao filósofo, atingir a intuição, é preciso também saber comunicá-la. E, de nenhum modo, Bergson considera isso ser possível sem linguagem. Para tanto, Bergson nos fala de uma linguagem imagética, ou, em outros momentos, de conceitos fluidos ou flexíveis. Em todo caso, será a atitude de se colocar na experiência que permitirá estes novos modos de portar a linguagem, de ir das coisas ao conceito, de inverter, portanto, a direção habitual do trabalho do pensamento (BERGSON, 2006a, p. 221).
         
Inspirado por Bergson, Georges Canguilhem, outro filósofo francês, bem identificou um problema corrente na ciência, qual seja, a de se importar conceitos provenientes da técnica, coisa da alçada da análise, para a experiência do cientista (CANGUILHEM, 2012, p. 15). É o que Bergson costuma dizer a respeito do movimento habitual do pensamento: partir de ideias prontas ou conceitos práticos, em vez de partir da própria experiência, em seus próprios termos e articulações. A ocorrência deste hábito se faz um problema importante, sobretudo, devemos dizer, respeitante às ciências biológicas, que tem como objeto não o mundo desorganizado e inerte, mas o mundo orgânico, o qual carrega, segundo Bergson, um princípio vital e organizador[6] que a matéria inorgânica se abstém. O filósofo, tal como o cientista, ainda tende, portanto, aos imperativos da análise quantitativa, quando na verdade devia, em primeira mão, se colocar no que de qualitativo a experiência tem a oferecer (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 56-61). O conceito, a análise e, portanto, o discurso científico e filosófico, deve, muito antes de enunciar suas descobertas e teorias, voltar os olhos para experiência. O contrário significaria observar a experiência munindo-se das prescrições da linguagem e do entendimento, coisa de ordem essencialmente relativa, subordinada, como já foi dito, aos quadros conceituais e cognitivos, e não à coisa investigada. Neste último caso, não é, portanto, o conceito que se adequa à experiência, mas sim a experiência que se adequa ao conceito — principalmente ao conceito técnico, como dito acima pela leitura de Canguilhem. Por esta via, a linguagem nunca poderia abarcar o real, exceto relativamente ao que o entendimento julga e recorta antecipadamente. Assim, sabendo o que Kant empreitou, Bergson está preocupado, sobretudo, com os limites da experiência possível que o entendimento insiste, por ordem natural, a estabelecer (KANT, 2012, p. 17). Isto é, antes mesmo da experiência, para a ciência que se encontra enclausurada pela análise, todo o real possível já está dado, de tal forma que a experiência nada terá a oferecer além de confirmar aquilo que os conceitos já prescreveram. Devemos saber que o possível e o real atendem, contudo, a ontologias diferentes: um diz respeito ao entendimento, isto é, aos limites que a inteligência traça para a percepção da realidade; o outro, radicalmente diferente, mas não incompatível, é pura imprevisibilidade (BERGSON, 2006a, p.103), ultrapassa o conjunto das experiências possíveis que a inteligência tende a estabelecer a priori.
            
Em conclusão, devemos ter claro que Bergson não é um tipo irracionalista, nem mesmo, como poderíamos conjecturar, um adversário da ciência. Muito antes, o que Bergson tem realmente em mente é a tentativa de reconciliar um elo perdido, uma fronteira que tornaram rígida demais para conciliações colaborativas. É uma metafísica positiva, fundada nos fatos (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 76), que Bergson pretende construir. Para tanto, metafísica e ciência devem permanecer lado a lado, operando critérios conjuntos, ou mesmo se provando uma a outra. Ele vai, inclusive, além e nos diz: “...queríamos uma filosofia que se submetesse ao controle da ciência e que pudesse também fazê-la avançar” (BERGSON, 2006a, p.73). Neste sentido, nosso autor nos fala de uma “metafísica da ciência” que já estaria implícita entre os grandes cientistas, e que já é, frequentemente, “sua invisível inspiradora” (BERGSON, 2006a, p. 184). Esta atitude filosófica não seria novidade, pois o próprio Bergson, em obras como Matéria e Memória, já opera um trabalho conjunto com a ciência — nesta obra, em especial, com a psicofísica — citando e reinterpretando dados científicos coletados acerca das afasias. De fato, esta forma de elaborar textos filosóficos fornece uma experiência muito gratificante para quem lê, na medida em que se percebe uma filosofia ciente da ciência de sua época, que não se enclausura em uma racionalidade fechada, mas que pensa, sobretudo, em um trabalho conjunto (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 75). Análise e intuição, portanto, não mais devem ser pensadas como uma antinomia inconciliável, o mesmo valendo para metafísica e ciência. Esta nova abordagem talvez nos permitiria pensar, com mais afinco e precisão, o que a filosofia tem a dizer sobre as “intuições pré-analíticas”[7] dos cientistas (ABRANTES, 2013, p. 124). Neste sentido, o aparente irracionalismo na geração de teorias científicas, na medida em que nos parece sugerir uma criatividade incondicionada, talvez possa revelar, finalmente, uma racionalidade (intuitiva) a se investigar. Talvez, a faculdade intuitiva, tão invisibilizada pela história da filosofia, tenha sido, sem nos deixar perceber, uma companheira propulsora de longa data, fornecendo o subsídio iluminador da inteligência e das novas formas que esta cria. Falta-nos, contudo, reconhecê-la, fazê-la manifestar. Para Bergson, as nossas faculdades cognitivas não se encerram nas estruturas da inteligência: a inteligência é aqui apenas uma pista de pouso onde faculdades superiores, e irreverentes enquanto permanecem nelas mesmas, podem descer para comunicar, com a linguagem filosófica e científica, novas instâncias não percebidas da realidade.

- Benny



[1] Nosso autor também fala de “seccionamento natural das coisas” (BERGSON, 2006a, p. 55). Propomos aqui que isso se entenda, também, e de maneira metafórica, como as “juntas” (no sentido anatômico) próprias da realidade.

[2] O próprio Bergson chama a atenção para um dogmatismo kantiano presente em sua época já na primeira nota de rodapé do texto Introdução à Metafísica (BERGSON, 2006a, p. 184).

[3] Para Bergson, é impossível representar, na concepção otimista do termo, a realidade intrínseca, isto é, o absoluto. Em vez disso, conceitos e imagens apenas direcionam, ou melhor, apontam o caminho para que o espírito filosófico, ele mesmo, proceda no esforço intuitivo necessário para tocar a realidade (BERGSON, 2006a, p. 183).

[4] É importante notar, como iremos ver adiante neste texto, que Bergson não desconsidera a operação dessa faculdade intuitiva, por exemplo, atuando implicitamente nas descobertas científicas. É a intuição do cientista, neste caso, indo das coisas aos conceitos, que possibilita a geração de novas teorias. Ver a primeira nota de rodapé de Introdução à Metafísica, onde Bergson fala de uma “invisível inspiradora” da ciência (BERGSON, 2006a, p. 184). Ver também sobre a espontaneidade da intuição em Coelho (1999, p. 152).

[5] Em diversos textos de Berson, e não menos na coletânea de textos de O Pensamento e o Movente, há um âmbito da vida psicológica que Bergson chamará inconsciente. Aqui não devemos deixar nos confundir com o inconsciente que a psicologia, sobretudo freudiana, vem a empregar. O inconsciente bergsoniano possui um estatuto espiritual, na medida em que a consciência é da alçada material, isto é, do que o cérebro converge para a ação.

[6] Ver, por exemplo, o conceito de elã vital (BERGSON, 2005, p. 95-106). Há, no pensamento de Bergson, um vitalismo que percorre toda a sua obra.

[7] Em seu capítulo sobre metametodologias, o professor Abrantes busca mostrar a importância que é, em uma abordagem “intuicionista” em filosofia da ciência, explicar as intuições pré-analíticas dos cientistas a fim de se estabelecer critérios razoáveis de uma boa ciência (ABRANTES, 2013, p. 122).


Bibliografia

ABRANTES, P. C. Método e Ciência: Uma Abordagem Filosófica. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013.
BERGSON, H. A Evolução Criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BERGSON, H. O Pensamento e o Movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.
BERGSON, H. Matéria e Memória. 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.
BERGSON, H. Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência. Lisboa: Edições 70, 2011.
CANGUILHEM, G. O Conhecimento da Vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
COELHO, J. G. Bergson: intuição e método intuitivo. Trans/Form/Ação, v. 22, p. 151–164, 1999.
COELHO, J. G. A crítica bergsoniana do conhecimento. Mimesis, v. 22, n. 2, p. 7–24, 2001.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Petrópolis: Vozes, 2012.
NETO, B. P. Wittgenstein e Bergson. Analytica, v. 9, n. 2, p. 43–58, 2005.
VIEILLARD-BARON, J.-L. Comprender Bergson. Petrópolis: Vozes, 2007.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. 5a ed. São Paulo: Vozes, 2005.

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