O Conceito de Normatividade Biológica
Muitos
anos se passaram desde a teoria darwiniana de seleção natural. Até então se
compreendia os organismos vivos como agentes passivos no processo evolutivo,
ou seja, não era em função de disposições ativas destes organismos que se dava a
evolução, mas sim a partir de variabilidades genéticas inerentes aos organismos
que, ao acaso, eram selecionadas pelo meio. Muitos anos depois um profundo
estudo acerca dos conceitos de normal e patológico, contudo, foi capaz de
revelar novas instâncias do reino biológico, uma instância que afirma uma
originalidade viva e dinâmica, resgatando o caráter ativo que os organismos
vivos possuem com o seu meio. Tal é o tema da tese de doutorado em medicina de
Georges Canguilhem de 1943, que ficou intitulada como “Ensaio sobre alguns
problemas relativos ao normal e ao patológico” (CANGUILHEM, 2014). Neste
trabalho, a partir de uma historiografia médica dos problemas propostos,
Canguilhem desenvolve o conceito de normatividade
biológica, que por vezes também se refere, quando se pretende um maior
alcance conceitual, como normatividade vital.
Neste artigo iremos manter uso, contudo, do termo normatividade biológica, a
fim de se evitar determinadas interpretações vitalistas equivocadas.
“Não há indiferença biológica.
Pode-se, portanto, falar em normatividade
biológica” (CANGUILHEM, 2014, p. 83),
esta é, assim defendemos, a asserção central na obra de Georges Canguilhem.
Central pois nos convida a refletir sobre a passividade dos organismos frente
ao seu meio e, sobretudo — em seu ensaio sobre o normal e o patológico —, sobre o
conceito de patologia. Muito se buscou, ainda no século XIX, afirmar uma identidade
entre os fenômenos fisiológicos e patológicos, de forma que nesta época esta
tese era tomada como um dogma (CANGUILHEM, 2014, p. 12). A identidade de
que falamos aqui deve ser entendida no sentido filosófico do termo, isto é,
entendida no sentido de que fisiologia e patologia não variam em natureza ou
qualidade, mas tão somente em grau, permanecendo, desta forma, os mesmos modos
orgânicos em ambos os casos sem que de nada novo se apresente ao médico clínico.
Assim, defendia-se que os fenômenos patológicos nada teriam de original, no sentido
de que eram, muito antes, fenômenos fisiológicos aumentados ou diminuídos, ou
ainda, e em exemplo, meros desvios de uma média fisiológica da glicemia (CANGUILHEM, 2014, p. 102). Isto significa
dizer que os estados fisiológicos e patológicos persistem em uma continuidade
homogênea, sem novidades, a fim de se melhor estabelecer métodos de ação
terapêutica (CANGUILHEM, 2014, p. 12).
Esta atitude, ou perspectiva profissional, do cientista médico, possui, no entanto, justificativas plausíveis. A ciência médica, por se pretender ciência natural, precisa alcançar o rigor das outras ciências naturais - como a física e a química. Neste sentido, se busca, tão quanto possível, tomar os eventos orgânicos como passíveis de análise quantitativa, de modo semelhante à análise que o químico faz uso para quantificar as propriedades da matéria inorgânica. Considerando esta perspectiva, defender uma originalidade substancial dos fenômenos orgânicos — diferentemente dos fenômenos inorgânicos —, implicaria em ter de nos comprometer com métodos radicalmente diferentes de investigação, de diagnóstico e, sobretudo, terapêuticos. Logo, as ciências médicas, em especial a de Claude Bernard — Canguilhem reserva um capítulo especial para este autor em seu doutorado —, precisou e precisa afirmar, ainda que metodologicamente — ou, em alguns casos, ontologicamente —, uma “identidade material de todos os fenômenos físicos, não importando a sua sede” (CANGUILHEM, 2014, p. 37). Esta tendência das ciências positivas a afirmar identidades, continuidades e homogeneidades está relacionada, em instâncias mais profundas, às próprias disposições da inteligência científica que escolhe tomar a realidade, entre outras coisas, segundo categorias inanimadas e estáticas, com a intenção, é verdade, de melhor projetar ações cabíveis e úteis à ação do homem. Nesta interpretação, em se tratando de ciência médica, justamente por ser, sobretudo, técnica terapêutica ou diagnóstica, o trabalho normal da inteligência estará longe de ser um trabalho desinteressado (BERGSON, 2006, p. 205). É com respeito a fins, isto é, a um tipo de razão instrumental, que negamos a realidade viva e recorremos à análise ao modo radicalmente mecanicista. É de certo modo previsível, portanto, que onde os organismos exibem sua vitalidade animada (para não cair no pleonasmo de uma “vitalidade viva”), a ciência prefere voltar sua atenção, isto é, sua interpretação, para os aspectos menos vitais, por assim dizer, aspectos “mortos”, ou melhor, abióticos. Canguilhem, neste ponto, nos diz: “A ideia da continuidade entre o normal e o patológico está, ela própria, em continuidade com a ideia de continuidade entre a vida e a morte, entre a matéria orgânica e a matéria inerte” (CANGUILHEM, 2014).
Canguilhem, apesar de fazer
observações sobre possíveis dimensões ontológicas que a análise científica — que
postula identidades — pode assumir, não parece refratário, no entanto, no que
diz respeito ao método científico. Ele compreende, claramente, que se deve
fazer uso de instrumentos analíticos na prática médica. Contudo, insiste no
ponto de não se deixar esquecer sobre a originalidade inerente aos fenômenos
orgânicos em seu curso. Citando Claude Bernard, nosso autor busca deixar claro
que “não há um único fenômeno químico que se realize, no corpo, da mesma forma
que fora dele” (CANGUILHEM, 2014, p. 39). Neste ponto chegamos à perspectiva holística que Canguilhem propõe: pode-se, legitimamente,
subtrair, em vista da análise, uma parte do corpo do restante, mas o curso
vital da vida, ela mesma, não pode ser compreendida com este tipo de abstração. Deve-se antes disso, portanto, se compreender o corpo segundo a perspectiva de um holismo orgânico. É no todo do indivíduo
que a doença se revela. Para o doente tudo muda, para ele a doença é uma forma diferente da vida, “é viver uma
vida diferente, mesmo no sentido biológico da palavra” (CANGUILHEM, 2014, p. 51).
Tomar a perspectiva de um holismo
orgânico significa passar a ver os indivíduos vivos em sua totalidade, pois é
só assim que a doença se revela. As doenças incidem no indivíduo e o mobilizam,
negativamente, como um todo. Apenas para o analista clínico, em uso de sua
técnica, é que um órgão isolado ou uma constante desviada por de ser a doença.
Para o doente, por outro lado, “as doenças são novos modos de vida” (CANGUILHEM, 2014, p. 61). A doença
revela, para o organismo, um déficit normativo,
a saber, uma relativa incapacidade de agir em seu meio. Ele percebe, em seu
organismo como um todo — o próprio doente toma, espontaneamente, uma
perspectiva holística — um decréscimo de potência e das possibilidades de
relação com o seu meio (SAFATLE, 2011, p. 19). O sentido de
normatividade biológica aqui, e portanto, começa a tomar contornos a partir do
estudo da doença. Patologia, para Canguilhem, é uma redução da capacidade
normativa de um indivíduo, que se vê preso a uma determinada norma. Esta norma
restrita é o que faz o indivíduo procurar o médico. Um sentimento de vida
contrariada, portanto, emerge à consciência do indivíduo, pois ele mesmo, o indivíduo, não é
indiferente às condições onde a sua capacidade de agir está debilitada. De modo
mais profundo, e em outras palavras, “...a vida não é indiferente às condições
nas quais ela é possível...” (CANGUILHEM, 2014). Ser saudável, para Canguilhem, significa, em
um importante sentido, ser mais do que normal, isto é, ser capaz de não se
restringir a uma única ou poucas normas, mas de ser normativo, ou seja, ser
capaz de instituir novas e diversas normas: “O homem normal é o homem
normativo, o ser capaz de instituir novas normas, mesmo orgânicas. Uma norma
única de vida é sentida privativamente e não positivamente” (CANGUILHEM, 2014, p. 92).
Este modo de ver a realidade
biológica parecerá obscura se não se compreender o que Canguilhem quer dizer
por normas biológicas. O normal remete a normas, e norma, aqui, significa forma de vida, maneira de se portar com
o meio. Um ser normal é aquele que bem se adequa aos desafios de seu meio, mas
um ser normativo, muito além disso, é o ser que Canguilhem chama efetivamente
por saudável, isto é, é um ser que, além de ser capaz de lidar com o seu meio
particular, ainda é capaz de lidar com outros meios: ele é mais do que normal, ele faz as normas, ele é normativo. O ser anormal, em
contraste, é o ser impossibilitado de instituir normas, incapaz de se adequar a novos meios:
é, portanto, o ser patológico (CANGUILHEM, 2014, p. 89). Estar doente
é, logo, estar preso a uma única ou poucas normas, é se sentir contrariado pela possibilidade de encarar novos
desafios normativos e, por fim, sentir sua vida restringida.
Neste ponto faz-se necessário
retornar à asserção inicial: “não há indiferença biológica. Pode-se, portanto,
falar em normatividade biológica”. O que significa dizer, afinal, que não há
indiferença entre os seres vivos? A biologia darwinista compreende os seres
vivos como seres passivos. Neste sentido, os organismos não se esforçam em
superar dificuldades; estes devem apenas aguardar os mecanismos de seleção
natural que o meio imporá. Todavia, Canguilhem aposta no que chama de polaridade dinâmica da vida (CANGUILHEM, 2014, p. 89), “viver
é, mesmo para uma ameba, preferir e excluir” (CANGUILHEM, 2014, p. 88). Os organismos,
neste sentido, estão, a todo o momento, tomando juízos de valor para sua ação,
ou seja, eles não podem ser indiferentes para o que lhes apresentam riscos ou
vantagens: o contrário seria negar a normatividade intrínseca que acompanha o
curso biológico da realidade. Um organismo tende a expandir sua normatividade,
a expandir, portanto, suas capacidades de ação em um e outros meios. Uma plasticidade funcional — sobretudo do
homem, mas não menos em outros organismos — está ligada a sua normatividade (CANGUILHEM, 2014, p. 120). Logo, diante
de umas e outras possibilidades, diante de uns e outros riscos, podemos falar
de valores vitais negativos (CANGUILHEM, 2014, p. 89), isto é,
disposições biológicas negativas, que são restrições normativas, significando o
que, para o indivíduo, constitui a doença: “...só porque o mal não é um ser não
se deve concluir que seja um conceito desprovido de sentido, ou que não existam
valores negativos, mesmo entre os valores vitais...” (CANGUILHEM, 2014, p. 63).
Por fim, falando ainda de medicina,
podemos distinguir dois tipos de disposições que os indivíduos assumem. A primeira
delas sendo instância integrante da própria originalidade da vida e a segunda,
patológica, sendo o que a polaridade da vida julgará como negativo: são elas as
constantes normais de valor propulsivo
e as constantes normais de valor
repulsivo (CANGUILHEM, 2014, p. 147). Constantes
normais, no sentido em que usamos, pode muito bem ser substituída, desde que se
tenha o cuidado de não hipostasiar o conceito, por constantes fisiológicas. Para Canguilhem, uma constante fisiológica
obedece a um contexto: uma constante fisiológica em determinado limite
geográfico e temporal pode ser normal e positiva, enquanto que em outros
contextos seria patológica. Para tanto, podemos tomar de exemplo a anemia
falciforme que, em determinadas regiões da África, por fornecer imunidade
contra a malária, pode ser vantajosa; enquanto que em regiões onde a malária é
praticamente erradicada, esta mesma anemia, por reduzir a taxa de transporte de
oxigênio pelas hemácias deformadas, se apresentará como uma restrição normativa
e, portanto, uma patologia: “...o estado patológico não pode ser chamado
anormal no sentido absoluto [patológico ou anormal em si], mas anormal [ou
patológico] apenas na relação com uma situação determinada” (CANGUILHEM, 2014, p. 138). As constantes
fisiológicas, ou as constantes normais, são tais, portanto, segundo condições
definidas de meio ambiente. Será propulsiva se, segundo a capacidade normativa
do individuo, se possibilita a instituição eventual de novas normas, resistindo
aos desafios de um novo meio; será repulsiva se a constante fisiológica
significar um obstáculo à normatividade do organismo. No primeiro caso, estamos
falando de um indivíduo saudável, no segundo estamos falando de um indivíduo
doente. Em todo caso, se trata de quão normativo, a ponto de poder estabelecer
novas fisiologias ou normas, é o organismo.
Podemos concluir, enfim, com uma
definição sucinta de doença: “O doente é doente por só poder admitir uma norma
[ou insuficientes normas]. Como já dissemos muitas vezes, o doente não é
anormal por ausência de norma, e sim por incapacidade de ser normativo (CANGUILHEM, 2014).
- Benny
Bibliografia
BERGSON, H. O Pensamento
e o Movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
CANGUILHEM, G. O
Normal e o Patológico. 7a. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014.
SAFATLE, V. O que é uma normatividade vital? Saúde e doença a
partir de Georges Canguilhem. Scientiae Studia, v. 9, n. 1, p.
11–27, 2011.
Comentários