Memória e Autoconsciência: Por Que Temos Consciência de Nós Mesmos.
Só podemos falar em futuro pela percepção de nossa memória que é a faculdade que nos prova, introspectivamente, a continuidade temporal da realidade. Sem memória, portanto, não poderíamos se quer conceber o futuro. O passado, por sua vez, não mais existe, exceto pelo o que armazenamos, novamente, pelas representações de nossa memória. Por fim, nos resta o presente que, na verdade, mal o dizemos e já se trata novamente de memória. Troquemos, então, o conceito físico, pontual, do presente e usemos um conceito funcional: o presente é aquilo que se apresenta à ação possível. Enquanto pensamos em agir sobre algo estamos, logo, presente, ou melhor, experienciando o presente. Novamente, contudo, quem ilumina a ação, quem a diz ser possível, é a memória. Mas ainda, o que nos parece mais importante, queremos falar de um Eu, de um sujeito por trás de nossas ações, mas que fatalmente já é memória. É preciso pouco esforço para notar que nossa percepção de nós mesmos é necessariamente uma rememoração. Por fim, só existimos enquanto lembramos. O que não lembra, logo, não existe para si, não possui consciência. Mas tudo na natureza age, tudo está, portanto, de alguma forma, presente e, se está presente, neste raciocínio, deve então possuir memória. Aqui caímos em um universalismo da consciência: é a ideia de que tudo, o universo inteiro, é vitalidade consciente.
Mas não nos enganemos acerca disso, pois em verdade se trata de uma visão esotérica da realidade. Há memórias e memórias. Uma se exemplifica no arranhão de uma rocha, que estará marcada através dos anos e condicionará por onde se escoará a água da chuva, é a memória material: ela também existe, biologicamente, em nosso sistema nervoso. Ela condiciona comportamentos automaticamente, ela não te dá escolha. Esta memória, o que é mais importante, não precisa ser rememorada, ela se impõe sobre as ações que iremos realizar. A memória aqui mais uma vez, ao se acumular, condiciona quem somos. Mas esta memória, apesar de condicionar-nos, de moldar-nos, não permite a experiência de pensar a si mesma, não permite o que esperamos por um Eu, esta memória sim está interconectada pelas suas redes de causas e determinações por todo o universo: é o tempo que se inscreve na matéria.
Falta atestarmos o segundo tipo de memória: é a memória que rememora a si mesma. Esta chamemo-lá de memória consciente. Aqui reside o maior enigma da filosofia e da ciência, pois há uma matéria no mundo, a saber, a matéria orgânica evoluída, capaz de rememorar a si mesma, capaz de consciência. Quais são, portanto, os atributos desta matéria que permite sua introspecção, isto é, sua capacidade de pensar a si mesma? Entusiastas da ciência dirão que em breve as pesquisas biológicas responderão concisamente este fenômeno. O que é muito curioso, isto é, precisar da ciência para explicar o que coincide com nós mesmos. Desde a rocha que acumula "memória" a partir da erosão até microorganismos capazes de armazenar informações em suas estruturas moleculares, parece haver um salto evolutivo quando falamos desta memória consciente. De alguma forma, ao longo da evolução, uma matéria inconsciente de si mesma se tornou consciente. Não parece intuitivo pensarmos que essa consciência se deu paulatinamente. Parece bastante estranho falarmos em complexos orgânicos "mais ou menos" conscientes. Consciência parece suscitar algo de absoluto, radicalmente separado da inconsciência.
Aqui, no entanto, reside o gênio maligno cartesiano, a matrix hollywoodiana: a memória genuína e consciente, a que nos suscita continuidade, quando comparada à uma rocha é a que melhor sabe esquecer. É ela quem, paulatinamente, em vez de cada vez mais acumular memória tal como os corpos inorgânicos, também a esquece, deixa para trás o que aprendeu materialmente. Entre estarmos inconscientes e estarmos conscientes nada é retido, nada fica, ela não nos permite regredir: ela é a faculdade mestra de pensar e planejar o futuro. como o futuro de nossas ações. Se houve um tempo em que estivemos parcialmente conscientes, isto é, a meio caminho evolutivo de tomarmos consciência de nós mesmos, este momento foi e precisou ser esquecido e não pode ser mais rememorado. Em vão procuramos por um exemplo na natureza: nada parece a meio caminho dela. E se, como acontece neste exato momento, queremos pensá-la retroativamente - do ponto de vista evolutivo, do "meio caminho" -, o fazemos, assim se espera, porque ela parece ser o próximo fator para nossas ações futuras - aquela que nos suscitou ações para objetos externos é quem coloca a si própria como objeto a partir de agora. É algo escandaloso: a memória, que tanto lembrou e, ao mesmo tempo, tanto esqueceu, mas no entanto permanece autoconsciente, quer voltar atrás. O porquê? Como haveria de saber? Ela não nos avisa sobre os seus planos, apenas a experienciamos com suas tendências. Novamente, outro erro, mas desta vez um erro pedagógico: para experienciarmos o que devia ser nós mesmos é porque só pode haver, em nome da lógica, duas pessoas, duas entidades. É, em um sentido específico, o insistente dualismo entre mente e corpo. Ora, mas se até agora, durante todo este texto, não falamos em uma mente, por que haveríamos de falar agora? Eis a resposta: teimamos em não querer aceitar que a biologia, estas moléculas orgânicas, são capazes de produzir, por estratégias de extrema composição biosistêmica, fenômenos que violam o senso matemático. O atributo dito anteriormente que tanto procuramos nestas moléculas, ou nestes sistemas, seja talvez justamente conter, em função de sermos efeitos e não causas - de sermos partes ou resultados dela e não ela mesma -, mais coisas do que nossa cognição seja capaz de apurar. Nela, talvez, apesar de violentar nossa intuição, duas pessoas podem residir em uma e também o que é múltiplo, como podemos pensar acerca de nossos estados mentais, pode ao mesmo tempo ser uno. Será a memória, ainda durante todo esse tempo permanecida material, a dotada deste "contra"-mecanismo que viola nossa intuição? Em verdade, nossa intuição já foi violada desde o início do raciocínio quando concebemos que uma única coisa pode pensar a si mesma sem, no entanto, nada de si mesma saber.
- Benny
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