Introdução à Introdução da Fenomenologia do Espírito de Hegel
Acompanhar
o movimento textual que Hegel opera na Introdução da Fenomenologia constitui tarefa suficientemente difícil para um
primeiro contato com o texto. Mais difícil seria, portanto, extrair de lá, de
forma sistemática, as motivações, os objetivos, o método e o significado
filosófico da noção de dialética que percorre o texto. Mesmo Hyppolite (2008),
em seu reconhecido trabalho sobre a Fenomenologia,
escolhe não acompanhar com rigor o movimento textual próprio da Introdução. Em
vez disso, apela para uma sistemática menos exegética e mais panorâmica. Mesmo
assim, o texto-comentário de Hyppolite não parecerá tão esclarecedor para leitores
iniciantes de Hegel. Provavelmente isso ocorra em virtude da economia dialética
na própria gênese textual da Introdução. Logo, quem procura encontrar os
elementos da dialética hegeliana no início da Fenomenologia acaba percebendo-se diante de outro esforço: enfrentar
a dialética inerente na ordenação dos próprios parágrafos.
Tendo superado essa dificuldade ― e
torçamos para que tenha sido realmente superada ―, será possível notar um
primeiro enunciado sobre as motivações
da fenomenologia, qual seja: a necessidade de superar um tipo disseminado de ceticismo
filosófico que limita o conhecimento através da ideia de um “em-si” da Coisa.
“Em-si”, este, que está para além de toda a experiência possível. Assim sendo,
o filósofo deve, antes de se voltar para o mundo, avaliar, ou colocar sob
exame, os limites e as determinações do ato mesmo de conhecer. Nas palavras de
Hegel, uma vez que estejamos contaminados pelo cuidado cético, tendemos a traçar
uma “nítida linha divisória” (HEGEL, 2008, §73) entre a dimensão do saber e a do
saber absoluto. Tal medida é colocada para o investigador a fim de se tomar conhecimento das possíveis modificações que a cognição projeta
sobre o seu objeto para só depois,
uma vez ciente de suas limitações, se empenhar em conhecê-lo [conhecer relativamente].
O resultado dessa cautela cética
será uma cisão estabelecida entre o sujeito cognoscente e o seu objeto. Assim,
podemos levantar algumas perguntas: não convém pensar que esse “cuidado” cético
não poderia ser, ele próprio, um pressuposto não examinado que iria de encontro
com a própria atividade do cético? Se não temos certeza sobre o objeto que
visamos, por que teríamos de ter, por sua vez, certeza de que não temos essa certeza?
Antes de darmos prosseguimento ao
raciocínio, vejamos quais são as modalidades [representações] acerca do
conhecer que os filósofos suspeitam mediar a relação entre o saber e o seu
objeto. Segundo Hegel, essas modalidades são “representações sobre o conhecer como instrumento e meio e
também uma diferença entre nós mesmos e
esse conhecer; mas, sobretudo, que o absoluto esteja de um lado e o conhecer de outro lado [...]” (HEGEL, 2008, §74).
Conhecer como instrumento porque
“[...] modifica o objeto a conhecer e já não apresenta tal objeto em sua pureza
[...]” (HYPPOLITE, 1999, p. 22) e, também, como meio, pois “[...] refrata a luz que o atravessa” (MENESES, 1992, p.
29). Dito de outro modo, a “representação natural” (HEGEL, 2008, §73) que a
filosofia tem sobre o conhecer parte da ideia de que o objeto nunca está dado,
está além, e que, portanto, não pode fazer parte de um saber efetivo, mas apenas de um saber relativo, não absoluto.
“[...] o Absoluto seria, portanto, distinto do conhecimento: nem o Absoluto
poderia ser saber de si, nem o saber poderia ser saber do Absoluto”, diz
Hyppolite (1999, p. 22).
Se, por outro lado, ainda almejando
a realidade do objeto, buscássemos descontar a alteração que o instrumento ou o
meio ― o conhecer, enfim ― aplicou sobre ele para ter, finalmente, o seu “em-si”,
acabaríamos por retornar ao início, pois o que restaria seria,novamente, um objeto a conhecer e, portanto, um objeto passível
de sofrer as mesmas determinações que o sujeito projetou sobre o mesmo no
início de seu esforço. Logo, enquanto houver algo a conhecer não há “o
verdadeiro em sua pureza”[1]
(HEGEL, 2008, §73). Temos aqui, finalmente, as diretrizes de sua motivação que,
por seu turno, se conjuga também com seu objetivo:
Hegel pretende superar a ideia de um objeto que não é, ele próprio, um objeto de conhecimento. Grosso modo, Hegel
postula não fazer sentido pensar em algo que não se possa conhecer, pois esse
próprio algo já é, em si mesmo,
produto do conhecimento. Imaginar algo que esteja para além de qualquer
conhecimento é, portanto, retornar ao próprio conhecimento. Do contrário, se
recorrermos à ideia de um conhecimento que não conhece absolutamente, mas
apenas relativamente, segue-se que o relativo, ele mesmo, será novamente relativo às determinações do
ato de conhecer. Por onde quer que tentemos escapar, teremos diante de nós
sempre um novo objeto sujeito às
determinações do conhecimento, de tal forma que todo objeto é, ao fim e ao
cabo,objeto cognoscível, isto é,objeto
para a consciência (HEGEL, 2008, §82).Assim, sua motivação é superar um
tipo de ceticismo que antecipa os limites do conhecer ― que quer “nadar sem se
molhar” ― e, de modo relacionado, o seu objetivo, o qual veremos adiante, é
colher o fruto desta superação, o saber
efetivo ou absoluto.
Agora entra em cena a proposta do saber fenomenal a que Hegel recorre para
resolver os impasses céticos. Este será o seu método. Isso significa que a consciência, segundo ele, precisa
percorrer seu caminho natural sem se antecipar sobre suas determinações. Sendo
assim, não se trata, em seu início, de uma consciência, ou ciência, que tem
diante de si um saber “atualizado” (MENESES, 1992, p. 30), mas apenas de uma
ciência não amadurecida e com um percurso inerente a cumprir. O fim (a “meta”)
dessa ciência será o saber efetivo e seu percurso é tão necessário quanto. Segundo
Hegel,”[...] o saber tem sua meta
fixada tão necessariamente quanto a série do processo. A meta está ali onde o
saber não necessita ir além de si mesmo, onde a si mesmo se encontra, onde o
conceito corresponde ao objeto e o objeto ao conceito” (HEGEL, 2008, §80).Dito
de outro modo, é na própria circunscrição do saber que uma fenomenologia poderá
revelar seus frutos. E não adiantará tentar se privar deste empenho, pois a
razão impede o saber de se deter perante a verdade. Lá onde há
“carência-de-pensamento” (HEGEL, 2008, §80), diz Hegel, o próprio pensamento
perturba essa carência com vistas a conhecer. Trata-se de um ímpeto que precisa ser cumprido.
Tendo a consciência sido convencida
a prosseguir seus estágios naturais (apesar disso não se tratar de uma escolha),
ela passa a distinguir seus elementos. Decidimos sugerir inicialmente uma
tripla distinção que já vem sendo usada de maneira tácita ao longo deste texto:
a consciência, o saber e o objeto. A consciência é o que está imediatamente
dado e permanece em íntima relação com o saber; o saber, por sua vez, significa
algo para a consciência. Por fim, o
objeto ― ou o “momento da verdade” segundo Meneses (1992, p. 32) ―é o “em-si”,
a verdade almejada pelos filósofos.
Em todo caso, compreendendo que o saber é,
de antemão, um elemento distinguido da consciência por ela e nela própria,a distinção que
especialmente interessará a Hegel será outra, qual seja, entre o saber e o objeto: “[...] o que é relacionado com o saber também se distingue
dele e se põe como essente, mesmo fora
dessa relação: o lado desse Em-si chama-se verdade
(HEGEL, 2008, §82)”.
É na própria consciência, assume
Hegel, que estas distinções operam, de tal forma que a consciência constitui sua
própria medida (Meneses, 1992, p.
32). Não haveria motivo, então, para procurar padrões de medida fora da
consciência. Para o filósofo que se envereda pelo desenvolvimento da
consciência natural até a consciência amadurecida basta que ele reflita a
consciência em torno de si mesma. Mude-se o saber, o objeto ― que deveria estar
para além da consciência ― também irá mudar, pois não existe objeto que não
seja objeto para a consciência. Este
ponto é especialmente importante. Nas palavras de Hegel, “na mudança do saber,
de fato se muda também para ele o objeto, pois o saber presente era
essencialmente um saber do objeto; junto com o saber, o objeto se torna também
um outro, pois pertencia essencialmente a esse saber” (HEGEL, 2008, §85). Assim
sendo, a suspeita e, por conseguinte, a alteração do saber com vistas a melhor
conhecer o objeto implica, do mesmo modo, em alterar o objeto. E se o objeto se
altera com o saber, significa que todo objeto é, portanto, dependente do saber. Nenhum objeto prescinde de
conhecimento. Não haveria, desta forma, um objeto independente, transcendental,
para além de todo o saber. Ao fim e ao cabo, o “Em-si” do objeto é, antes, o
“Em-si” para a consciência e, portanto, cognoscível.
Sabendo então que o “Em-si” só o
poderia ser para a consciência,
podemos finalmente tratar sobre o significado
da noção dialética da Experiência. Neste momento, “[...] entra em cena a
ambiguidade desse verdadeiro” (HEGEL, 2008, §86). Se não é mais possível pensar
em um objeto incognoscível, pois ser um objeto implica cognoscibilidade, um
novo modo de conhecer se apresenta à consciência. Esse movimento exposto, isto
é, o movimento que se percorre no saber fenomenal para fazer emergir o verdadeiro para a consciência, coincide
com o que Hegel chamará de experiência:
“Esse movimento dialético que a
consciência exercita em si mesma, tanto em seu saber como em seu objeto, enquanto dele surge o novo objeto verdadeiro
para a consciência, é justamente o que se chama experiência” (HEGEL, 2008, §86). A “essência” ou o “Em-si” que se
postula como a realidade para além de toda a experiência se torna, agora, a
própria experiência, pois toda experiência acompanha um algo essente que a consciência natural necessariamente manifesta. Ao
mesmo tempo, e consequentemente, o conteúdo essente do objeto, enquanto fora de
sua relação com a consciência, é “aniquilado” (HEGEL, 2008, §86).
Com a aniquilação do objeto essente
e o surgimento desse novo objeto, isto é, o em-si que apenas pode ser em-si para a consciência, ocorre uma “reversão
da consciência” (HEGEL, 2008, §87). Dito de outra forma, uma nova “figura da
consciência” (HEGEL, 2008, §89) se apresenta. O conteúdo essente, portanto, não
consiste mais no “Em-si” do objeto que escapa ao conhecimento. Tal essência por
trás das coisas pertencia apenas à consciência não-amadurecida. A consciência científica, por outro lado, que conhece efetivamente, tendo percorrido a série
de figuras da consciência que constituem o desenvolvimento da consciência
natural, não se encerra na noção de uma essência incognoscível, mas apreende seu
objeto tal como deve ser. Trata-se, de modo geral, de um resgate da
realidade objetiva ― admitindo seu conteúdo subjetivo ―, pelo saber
fenomenológico e dialético, visando compreender os movimentos genealógicos que
compõem a própria experiência. Se Kant, anteriormente a Hegel, procurou
explicitar as condições apriorísticas
que tornam possível a experiência, Hegel, por sua vez, quis reconstituir o
processo natural da consciência em seu próprio exercício, revelando a natureza
e, sobretudo, a gênese dos próprios
limites abstratos da experiência que Kant tomou como critério. O exame do saber
ganha, em Hegel, profundidade e radicalidade. Segundo Hyppolite, “O caminho que
segue a consciência é a história
pormenorizada de sua formação. O caminho da dúvida e o caminho efetivamente
real que se segue a consciência, seu itinerário próprio, e não aquele do
filósofo que toma a resolução de duvidar” (HYPPOLITE, 1999, p. 28). A
experiência da consciência, o movimento que ela desempenha sobre si mesma em
busca de sua gênese, é, portanto, a própria noção hegeliana de dialética.
- Benny
Referencias Bibliográficas
HEGEL,
G. W. F.Fenomenologia do Espírito.
5ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes e Editora Universitária São Francisco, 2008.
HYPPOLITE,
J. Gênese e Estrutura da Fenomenologia
do Espírito de Hegel. São Paulo: Discurso Editorial, 1999.
[1] O verdadeiro para Hegel, assim
podemos entender, é antes a própria impureza, isto é, a natureza sempre
relacional do conhecimento.
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