O que quer o Pós-Anarquismo? Esclarecimentos Preliminares (parte 1)


Texto por Benny

            Tratar do pós-anarquismo não parece tarefa fácil sem antes termos algumas cartas na mesa, a começar pelo próprio termo. De fato, o termo suscita problemas de ordens diversas e chega ao ponto de gerar indignações imediatas por parte de anarquistas ortodoxos que, possivelmente, tratarão o “pós” como uma intolerável espécie de segundo anarquismo, um anarquismo que estaria para além dele próprio ou da sua origem. Pior ainda, há ainda aqueles que tratam o “pós” como abreviação de pós-modernismo, termo que remete a um conjunto de determinados discursos que caracterizam a época do capitalismo avançado ― nomes como Zygmunt Bauman poderiam ser aqui evocados. Além disso, o termo pós-moderno, sobretudo entre os círculos mais ortodoxos da esquerda, possui forte carga pejorativa. Estes últimos alegam que o discurso pós-moderno é uma tendência, em geral, irracionalista e contra-revolucionária. Felizmente ― ou não, isso não vem ao caso ―, o prefixo “pós” remete não ao que se fala de pós-modernidade, mas sim ao que se fala de pós-estruturalismo[1], uma vertente filosófica contemporânea (com expoentes sobretudo na França) que busca alternativas epistemológicas sobre o estruturalismo antecedente. Os nomes mais conhecidos desta corrente são Foucault, Deleuze, Guatarri, Derrida, Lacan e Lyotard[2]. Se for ainda possível qualificar certos autores como “proto-pós-estruturalistas”, poderíamos resgatar até mesmo alguns autores do século XIX, tais como Nietzsche, e o pouco conhecido ― porém importantíssimo para o pós-anarquismo ― jovem hegeliano Max Stirner (NEWMAN, 2001, p. 54).
            Um outro adiantamento que se faz importante colocar, que inclusive deveria, muito antes, ser uma nota de rodapé, mas que escolhemos trazer ao corpo textual principal, refere-se ao que hoje chamamos de minarquismo, ou ainda, respeitando uma terminologia não menos problemática, liberalismolibertário” [as aspas são minhas], libertarianismo ou, simplesmente, liberalismo radical. Esta vertente da teoria política tem seus precursores em épocas pré-iluministas, tais como Hobbes[3] e Locke, e encontra seus melhores expoentes contemporâneos entre os economistas da escola austríaca, como Mises e Hayek. A tese central do minarquismo diz respeito à defesa da esfera econômica individual. Advogando um “estado mínimo”, os minarquistas desejam transferir a força da instituição estatal para o regime da propriedade privada. Se trata, em verdade, de uma corrente teórica com grande popularidade hoje e que, a cada dia, alcança novos adeptos. Dentre as características dos adeptos desta doutrina, podemos tornar notável suas posturas anti-socialistas ― ou mesmo, devemos dizer, anti-sociais ― e economicistas, isto é, usam como critério teórico para abordar a sociedade uma espécie de reducionismo econômico, onde a realidade social poderia ser melhor interpretada, ou mesmo encaminhada, sob as lentes criteriais da economia de mercado.
            O minarquismo ― ou sua versão Estado-esquizofrênica “anarco-capitalismo” ― pouco tem a ver, no entanto, com o pós-anarquismo. Exceto, talvez ― e aqui jaz o problema ―, quando falamos de Max Stirner, um autor por demais caro aos pós-anarquistas, mas que costuma ser semi-acolhido por liberais capitalistas. Sua obra, O Único e a Sua Propriedade (STIRNER, 2009), chama a atenção dos liberais radicais, sobretudo pelo seu enfoque individualista. No entanto, o individualismo de Stirner, que poderia ser muito mais bem compreendido como um subjetivismo pessoal (que antecede a subjetividade coletiva), não é, ao contrário do que os liberais libertários insistem em interpretar, um individualismo análogo àquele que pensamos ao falar de individualismo capitalista. Stirner foi bastante claro sobre o caráter ideológico e dominador do dinheiro e do princípio da propriedade privada. Ele chega mesmo a fazer deboche da meritocracia liberal ― que denomina “aristocracia do mérito” (STIRNER, 2009, p.136) ―, da liberdade individual do liberalismo (STIRNER, 2009, p. 140) e, em um momento de deboche singular para falar “dos filhos do Estado”, ataca também a livre-concorrência (STIRNER, 2009, p. 143). No Único, inclusive, há um capítulo separado para criticar o liberalismo em suas diversas formas, bem como a burguesia da época. Neste sentido, vale a pena, a fim de encerrar essa onerosa controvérsia sobre Stirner, a longa citação seguinte:
O Estado da burguesia deixa-te ser podre de rico ou miserável, desde que o teu ideário seja 'correto'. Ele exige isso de ti, e considera inculcá-lo em todos os outros sua tarefa prioritária. Por isso te protege dos 'maus conselhos', reprimindo os 'mal intencionados', silenciando os seus discursos subversivos com censura e coimas, ou atrás das grades, escolhendo para censores indivíduos de 'ideário correto' e levando de todas as maneiras possíveis os 'bem-intencionados e bem pensantes' a exercer sobre ti uma influência moral. E, depois de ter tornado surdo os maus conselhos, apressa-se logo a abrir-te os ouvidos aos bons (STIRNER, 2009, p. 137).
A burguesia comporta-se, em todos os planos, de forma liberal. Toda a intrusão pessoal na esfera do outro irrita o sentido burguês: se o burguês vê que alguém está dependente do capricho, da arbitrariedade, da vontade de um indivíduo singular (isto é, não autorizado por um ‘poder superior’), ostenta logo todo o seu liberalismo e grita: arbitrariedade! Enfim, o burguês afirma a sua própria liberdade em relação àquilo que se chama dar ordens (ordennance): "A mim ninguém dá ordens!". [..] A liberdade de imprensa, entre outras, é uma dessas liberdades do liberalismo, que só combate a violência da censura porque vê nela a arbitrariedade pessoal, mas se mostra complacente com as 'leis da imprensa' que tiranizam aquela liberdade. Ou seja: os liberais burgueses querem a liberdade de expressão escrita para si, porque, como eles próprios são legalistas, não cairão com os seus escritos sob a alçada da lei. Só o que é liberal, isto é, legal(ista), deve poder ser impresso; nos outros casos, as 'leis de imprensa' ameaçam com punições próprias. Sentido-se a liberdade pessoal assegurada, nem se repara que, continuando por esse trilho, se instala a mais gritante falta de liberdade. Porque das ordens já nos livramos, e ninguém nos dará ordens, mas ficamos muito mais submetidos a força da lei. E assim é se escravizado de todas as maneiras e da maneira mais legal [jurídica] (STIRNER, 2009, p. 141).
                Seja como for, mesmo que retirássemos, por hipótese, Stirner da história, parece sempre haver o risco mais geral de um anarquismo desvirtuado "paquerar" com tais tipos de posturas mercadológicas. Saul Newman, o autor central para o pós-anarquismo que iremos tratar mais detidamente adiante, chama a atenção para essa possibilidade em alguns textos centrais (NEWMAN, 2001, p. 11; 2012, p. 105) . É preciso, logo, um olhar crítico e suspeito para essas novas, porém já velhas em princípio, formas de discursos enviesados que buscam proximidade com o anarquismo. Em suas formas mais extremadas, como já mencionado, elas buscam se revelar como posturas anarquistas em si mesmas. Trata-se de um problema de ambiguidade teórica, enfim, que levará tempo para se esgotar. O pós-anarquismo, neste sentido, oferece uma crítica ao liberalismo muito valiosa para este debate, na medida em que solapa, de modo fatal, com os fundamentos iluministas essencialistas fundadores do próprio liberalismo.
            Tendo esclarecido esses pontos, podemos nos lançar diretamente às nossas considerações iniciais sobre o pós-anarquismo. A primeira delas, concernente a uma suposta demarcação entre anarquismo e pós-anarquismo, ou mesmo sobre uma possível fundação distintiva do pós-anarquismo, pode ser bem explanada com os dizeres de Saul Newman:
O pós-anarquismo não é uma forma específica de política, não oferece nenhum programa ou diretivas. Não é sequer uma teoria particular da política enquanto tal. Tampouco deve ser visto como o abandono ou um deslocamento para além do anarquismo; não significa um “estar após” o anarquismo. Ao contrário, o pós-anarquismo é um projeto de radicalização e renovação da política do anarquismo que consiste em pensar o anarquismo como uma política. Vamos entender o pós-anarquismo como uma espécie de desconstrução (NEWMAN, 2012, p. 107).
                Esse caráter de análise desconstrutiva que propõe o pós-anarquismo atende ao conceito de desconstrução de Derrida, isto é, “uma ‘metodologia’ destinada a interrogar e desmascarar as hierarquias conceituais, oposições binárias e aporias na filosofia ― seus momentos de incoerência e de autocontradição” (NEWMAN, 2012, p. 107). Em outras palavras, o pós-anarquismo pretende ser, antes de se constituir como doutrina, uma ferramenta que, dentre outras coisas, reúne instrumentos epistêmicos ― como o pós-estruturalismo ― para repensar o discurso anarquista clássico e, consequentemente, renova-lo. É acreditando na insuficiência dogmática do anarquismo clássico ― de fornecer explicações sobre conjunturas mais complexas da realidade política ― que o pós-anarquismo apresenta sua revelia. Ao mesmo tempo em que o anarquismo clássico carece de um revival (NEWMAN, 2006, p. 31), ele também clama por uma radicalização. Este último termo deve aqui ser compreendido em suas múltiplas formas, mas com uma em especial, a forma etimológica, qual seja, a de procurar novas, ou ignoradas, raízes de dominação, “locus de poderes”. Nas palavras de Ernesto Laclau, um recém e importante falecido pós-marxista, em seu prefácio que concedeu à obra de Saul Newman From Bakuninto to Lacan:
Já se foram os tempos em que a localização do poder podia ser referida em uma simples e inequívoca forma – como usando a noção de “classe dominante”. Hoje, a proliferação de agentes sociais, bem como a crescente e complexa fábrica de relações de dominação, trouxeram abordagens que tendem a enfatizar a pluralidade de redes através das quais o poder é constituído, bem como as dificuldades em construir [uma teoria] mais totalizante dos efeitos do poder (NEWMAN, 2001).
            As ressonâncias com a teoria heterodoxa do poder de Michel Foucault são pronunciadas em Ernesto Laclau, bem como em pós-anarquistas como Saul Newman e Todd May. Em todos os casos, trata-se de uma nova atitude para a identificação dos mecanismos políticos imanentes às próprias relações sociais. O anarquismo clássico, segundo o pós-anarquismo, deixou-se, por assim dizer, “hipnotizado” pelo poder institucional, isto é, o poder “palpável” e apontável. No entanto, o pós-estruturalismo ― bem como de outra forma Max Stirner ― revelou instâncias de poder antes impensadas, mecanismos de poder anônimos que estariam mediando as relações constitutivas do mundo político. Trata-se, especificamente, de buscar uma abordagem de investigação da diversidade fenomênica do que se costuma chamar de uma microfísica do poder (FOUCAULT, 2015). Se há algo fundacional no pós-anarquismo, portanto, é a busca por dispositivos implícitos no campo político. Se, em séculos passados, pensava-se o poder como coisa localizada  sobretudo o Estado , o anarquismo pós-estruturalista pretende pensar o poder tanto do ponto de vista do Estado como, também, do ponto de vista do poder não-anunciado, do poder que se manifesta sem revelar nomes, do poder como o político que constitui o inconsciente no coração das relações sociais e que se diferencia, segundo Newman, do poder mais visível e cristalizado, ou seja, a política (NEWMAN, 2012, p. 111).
            Pensar esse novo estatuto do poder requer esforços mais atenciosos que deixaremos para a sessão seguinte. Por ora, e para encerrarmos estas breves considerações, vale anunciarmos os alvos gerais do pós-anarquismo, quais sejam, o essencialismo da subjetividade humana, o universalismo moral e o fundamentalismo ontológico, todos presentes no discurso de anarquistas clássicos como Bakunin, Kropotkin e Proudhon. Estes princípios datam, em especial, das prerrogativas fundacionais do iluminismo moderno, no qual o anarquismo ortodoxo colhe grande parte do seu vocabulário conceitual. Dessa forma, os discursos que deviam ir de encontro com prerrogativas fundamentais que inspiraram iluministas burgueses, acabaram, simplesmente, tornando-se os sustentáculos do anarquismo. O anarquismo, neste sentido, carece e careceu de radicalidade, pois em vez de vivisseccionar e inspecionar ideias teóricas que normalizavam os encaminhamentos revolucionários, as pressupôs como aprioristicamente dadas. Tornou-as intocáveis, canônicas e, portanto, fundacionais da própria doutrina anarquista. Trata-se, no pós-anarquismo, de reavaliá-las, de colocá-las sobre o crivo de novas e profundas ferramentas epistêmicas para pensar encaminhamentos revolucionários renovados:
[..] o pós-anarquismo não é uma transgressão ou um movimento para além dos termos do anarquismo; não consiste na superação do anarquismo, em vez disso, funciona em seu interior engajado constantemente com seus limites, invocando uma força de fora para repensar e transformar esses limites. Ao fazer isso, ele modifica o campo discursivo do anarquismo sem abandoná-lo efetivamente.

Sobretudo, o pós-anarquismo interroga a “metafísica da presença” que continua assombrando o anarquismo, visando desestabilizar o fundacionismo sobre o qual repousa o discurso do anarquismo clássico. Suas ferramentas desconstrutivas são o pensamento pós-estruturalista e os elementos da teoria psicanalítica; ferramentas através das quais é possível desenvolver uma crítica das identidades essencialistas e dos fundamentos ontológicos. Como argumentei em outro lugar, muitas das categorias centrais e das reivindicações do pensamento anarquista clássico estão baseadas em pressupostos que não podem mais ser sustentados teoricamente. Estes incluem: uma concepção essencialista do sujeito, a universalidade da moral e da razão, e, consequentemente, a ideia de um esclarecimento progressivo da humanidade; uma concepção da ordem social como naturalmente constituída (por leis naturais, por exemplo) e racionalmente determinada; uma visão dialética da história e um certo positivismo no qual a ciência poderia revelar a verdade das relações sociais. Esses pressupostos derivam do discurso humanista e iluminista do qual o anarquismo dos séculos 18 e 19 foi muito influenciado. Meu argumento é que essas ideias já não possuem tanta força; que são parte de um certo paradigma epistemológico, uma certa maneira de pensar e ver o mundo que é cada vez mais problemática e difícil de sustentar. O que não quer dizer que o Iluminismo foi ultrapassado, mas sim que suas tendências centrais devem ser reconsideradas (NEWMAN, 2012, p. 108).

            Talvez fosse importante pensar se, diante da desnecessidade, o termo pós-anarquismo merecesse ser empregado. Em verdade, ou pelo menos como nos parece pensar Saul Newman, o pós-anarquismo é anarquismo, principalmente se pensarmos que a doutrina anarquista, como qualquer outra, possui o seu desenvolvimento e reformulações ao longo do tempo. As diferenças de nomenclaturas, assim entendemos, ocasionam, ainda que de modo sorrateiro, possíveis antagonismos teóricos que poderiam, em campo de militância, prejudicar a unidade estratégica das lutas ― Newman, no lugar de postular algo novo, toma explicitamente como encaminhamento de luta aquilo que poderíamos chamar, em geral, de "anarquismo social". Assim, uma reflexão sobre a vantagem (ou desvantagem) dessa dualidade de termos parece ser de alto interesse e merecedora de posteriores reflexões.

Bibliografia           
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 2a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
NEWMAN, S. From Bakunin to Lacan: Anti-Authoritarianism and the dislocation of power. Oxford: Lexington Books, 2001.
NEWMAN, S. As políticas do pós-anarquismo. Verve, v. 9, p. 30–50, 2006.
NEWMAN, S. Anarchism, poststructuralism and the future of radical politics. SubStance, v. 36, n. 113, p. 3–19, 2007.
NEWMAN, S. Pós-Anarquismo: entre política e antipolítica. Revista de Ciências Sociais, v. 36, p. 103–115, 2012.
STIRNER, M. O Único e a Sua Propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
STRAUSS, L. Os três movimento da modernidade. Ethic@, v. 12, n. 2, p. 321–345, 2013.





[1] Newman, em um glossário do seu livro From Bakunin to Lacan, problematiza se existiria, afinal, uma doutrina ou tradição como a referenciada pelo termo pós-estruturalismo. Ele nos alega que talvez o termo simplificasse por demais, sob um só nome, diferentes modos de discurso encontrados nos autores que estão costumeiramente relacionados ao termo. Seja como for, ele ainda admite que essa terminologia, em caráter de conveniência, tem sua utilidade referencial (NEWMAN, 2001, p. 13).
[2] Uma sintética, mas excelente exposição da corrente pós-estruturalista, pode ser encontrada com fácil linguagem em Newman (2001, p. 13).
[3]Muitos não aceitariam que Hobbes (1588-1679), autor do Leviatã, teria alguma relevância significativa para o desenvolvimento da doutrina liberal. Contudo, o liberalismo tem hoje flertado com a emergência do “Estado de Exceção” em função dos eventos de terrorismo, ocasião onde o Estado passa a tomar atitudes fora da lei e da ética a fim de salvaguardar a segurança, coisa muito próxima da teoria da soberania de Hobbes (NEWMAN, 2007, p. 6). Uma reflexão por outras vias, mas que deságua no mesmo destino, pode ser encontrada em “Os Três Movimentos da Modernidade” de Leo Strauss (2013). Resumindo, um retorno aos princípios essencialistas pré-modernos parece caracterizar o Estado advogado ― seja implícita ou explicitamente ― pelos liberais hoje. Reflexões mais apuradas desta tese merecem ser desenvolvidas. 

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