Entre a Paz e a Guerra: O Modelo de Interpretação da Sociedade
O que temos a seguir é uma tradução livre realizada por mim da última subseção do capítulo 2 do livro de Saul Newman intitulado From Bakunin to Lacan. O capítulo tem por nome Anarchism e a subseção escolhida The War Model (O Modelo de Guerra). Trata-se de uma reflexão entre concepções clássicas e heterodoxas do anarquismo a respeito do que constitui os processos sociais.
O Modelo de Guerra
Tradução por Benilson Nunes
Outra implicação da instabilidade do
lugar de resistência é a de abrir a possibilidade de uma concepção
alternativa das relações sociais. O anarquismo, como argumentei, rejeita o
modelo do "estado de natureza" hobbesiano tradicional em favor do
modelo de harmonia das relações sociais. O modelo de harmonia social tem agora,
no entanto, de lidar com uma incerteza: ao mesmo tempo em que os indivíduos são
naturalmente morais e sociais, e, também, ao mesmo tempo em que a sociedade é,
portanto, essencialmente harmoniosa, os indivíduos também possuem um lado
obscuro ― um desejo insaciável por poder e autoridade ― que compromete essa
harmonia. Essa aparente contradição não significa que o modelo de harmonia das
relações sociais deva ser rejeitado. No entanto, ela lança algumas dúvidas a
respeito, e, consequentemente, nos obriga a considerar outras formas de abordar
o problema.
A necessidade de questionar o modelo
de harmonia social não surge de uma atribuição de ingenuidade à mesma: o modelo
de harmonia das relações humanas, o qual afirma que os seres humanos são
essencialmente sociáveis e altruístas, não é mais realista do que o modelo
hobbesiano, o qual afirma, por outro lado, que os indivíduos são essencialmente
egoístas e competitivos. Eles são os dois lados de uma mesma moeda idealista ― num
sentido, são imagens de espelho uma da outra. No entanto, e se tivéssemos de
aplicar o modelo de conflito hobbesiano às relações sociais? E se fôssemos
tomar esse modelo, não no sentido de seus pressupostos essencialistas sobre a
natureza humana, mas sim no sentido do seu uso da guerra como uma metáfora para
as relações sociais? O modelo de guerra
vê as relações sociais como caracterizadas pelos constantes antagonismos, falhas
e deslocamentos. No entanto, não se usa "guerra" aqui da mesma forma
em que Hobbes pretendia significar para descrever um estado de natureza cujo os
indivíduos estão constantemente em guerra uns com os outros. Eu o uso aqui, ao
invés disso, para atacar justamente essa noção essencialista da sociedade. O
modelo de guerra talvez possa ser usado contra Hobbes para rejeitar a própria
ideia de "sociedade" como um conceito, ou pelo menos para rejeitar a tese
de haver uma essência na sociedade. Talvez a sociedade deva ser vista como um
lugar vazio, uma identidade incompleta, instável, caracterizada pelo constante
antagonismo e, consequentemente, aberta para a reinterpretação contínua.
Isso nos remete a ideia nietzscheana
da guerra como sendo a luta de valores e representações. A realidade social, de
acordo com Nietzsche, não é governada pela lei da evolução natural como os
anarquistas argumentam, mas pela constante luta de uma multiplicidade de forças
que se inscrevem na lei. Até mesmo a lei natural é uma interpretação sobre força
e conquista. Nietzsche, então, diz:
"[...] o que quer que exista, tendo de alguma forma vindo a ser, é repetidamente reinterpretado para novos fins: tomado, transformado e redirecionado por algum poder superior a ele; todos os eventos no mundo orgânico são um subjugar, um tornar-se senhor, e todo subjugar e tornar-se senhor envolve, em particular, uma interpretação nova, uma adaptação através da qual qualquer "significado"e "propósito" prévios são necessariamente obscurecidos ou mesmo obliterados."
(Nietzsche, F. On the Genealogy of Morals, ed. and trans. Walter Kaufmann. New York: Vintage Books, 1989, p. 76)
De acordo com isso, a sociedade em
si mesma pode não ter um significado estável ― nenhuma origem, e nenhum grande
movimento dialético em direção a uma conclusão ― porque o significado em si
mesmo é aberto a contínua mudança e reinterpretação. Isso questiona tanto o
anarquismo quanto o hobbesianismo,
pois ambos prevêem uma sociedade plena, livre do conflito e antagonismo. Como
eu irei argumentar em capítulos subsequentes, particularmente com referência a
Lacan, a identidade ― social ou individual ― nunca pode ser completamente
constituída: ela está sempre fundamentada numa carência [que Bakunin talvez
tenha não intencionalmente exposto], impedindo-a de alcançar a plenitude. Ela é
sempre limitada pela rixa e antagonismo. Como Nietzsche argumentaria, nenhuma
sociedade pode estar livre de antagonismo e de conflito, pois antagonismo e
conflito são, em certo sentido, tudo daquilo que a sociedade é constituída. A
própria noção de sociedade é baseada na conquista e dominação instável de
certas forças sobre outras. Hobbes, por exemplo, vê a regência da lei como
suprimindo hostilidades. No entanto, a lei, como Nietzsche argumenta, é uma
continuação da luta, não uma trégua: "Uma ordem legal compreendida como
soberana e universal, isto é, compreendida não como um meio na luta entre
poderes complexos, mas como um meio de impedir toda luta em geral, seria um
princípio hostil à vida."
A vida, para Nietzsche, é o
reconhecimento da luta: aceitar que não há significados
fixados, essências ou identidades estáveis. Na base destas há sempre um
conflito de forças tornando-as inerentemente instáveis e abertas à reinterpretação.
Apolo é sempre assombrado por Dionísio. Apolo é o deus da luz, mas também o
deus da ilusão: ele "garante repouso aos seres individuais... desenhando
fronteiras em torno deles." Dionísio, por outro lado, é a força que
ocasionalmente destrói esses "pequenos círculos", perturbando a
tendência apolínea em "congelar a forma numa rigidez e frieza egípcia."
A sociedade é a ilusão, talvez, que oculta a luta e antagonismo por trás das
cenas ― por trás do "véu de maya".
A guerra é a realidade: a obscura, túrgida, violenta luta de forças
silenciosas; o conflito da multiplicidade de representações que são
precariamente mantidas em cheque por noções como essência humana, moralidade,
racionalidade e lei natural. A "vontade de poder", por exemplo, é a força
volátil, obscura, que ameaça a pureza e estabilidade do sujeito anarquista. O
sujeito que coloca a si mesmo contra o poder é o mesmo sujeito que secretamente
anseia poder. Sua identidade é, portanto, precária.
O modelo de guerra, ou o modelo
"genealógico" como Nietzsche o veria, desmascara a rixa por trás da
resolução, a discórdia por trás da harmonia, a guerra por trás da paz. Ele revelou o vazio no coração do lugar. O anarquismo se apoia sobre a essência: sobre
a noção de uma subjetividade humana natural, essencial; sobre a existência de
uma essência natural nas relações sociais que será capaz de tomar o lugar o
Estado, o lugar do poder. Essa ideia de essência constitui o ponto de partida
do anarquismo, seu lugar de resistência que não é contaminado pelo poder. O
modelo de guerra, no entanto, coloca em risco essa ideia de essência: ele
afirma que essa própria essência é, ela mesma, meramente a dominação temporária
e precária de certas forças sobre outras, e que não há nada transcendental ou
permanente a respeito dela.
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