Freud e o Problema Ontológico da Mente: breves considerações
Por Benilson Nunes
Buscar uma teoria da mente em Freud
se mostra uma tarefa árdua. Sua terminologia, diferentemente daquelas que
observamos na filosofia da mente contemporânea, suscitam problemas de
interpretação quando esperamos encontrar uma estrutura teórica sobre a natureza
da mente. Assim, sem pretender solucionar problemas anunciados por seus
comentadores, contamos a seguir com algumas considerações, alavancadas por Caropreso, que aproximam Freud
de uma teoria emergentista muito semelhante àquelas que encontramos entre os
filósofos da mente contemporâneos.
Segundo Caropreso (2009, p. 148), o
primeiro texto no qual Freud trabalha a relação entre mente e cérebro data de
1891 e tem como título Sobre a Concepção
das Afasias. Neste trabalho, Freud enfrenta as concepções de autores como
Wernicke e Lichtheim os quais defendiam que as afasias eram anatomicamente
localizadas ― uma concepção “localizacionista” ―, de tal forma que cada região
do cérebro comportaria uma subfunção independente para a fala. Freud,
contestando-os, defendeu que as regiões do cérebro responsáveis pela fala eram
interdependentes e que uma mesma região pode abrigar diversas funções. Assim,
não era possível saber a localização exata de cada subfunção, mas apenas uma
localização geral (CAROPRESO, 2009, p. 149).
Ainda neste trabalho sobre as
afasias Freud assume, segundo Caropreso (2009, p. 149), a “doutrina da
concomitância” de Hughlings Jackson. Nessa perspectiva, o psíquico se constitui
como um fenômeno paralelo ao fisiológico. Assim, para cada estado mental
haveria um estado nervoso correlativo. Por exemplo, a imagem visual, se
compreendida como um estado puramente mental, surgiria durante os processos nervosos. A doutrina da concomitância, no
entanto, não estabelece uma relação de causalidade entre a atividade nervosa e
a atividade psíquica, de forma que a natureza do mental se apresenta como
distinta da natureza dos estados cerebrais: “De acordo com a doutrina da
concomitância de Jackson, os estados mentais ou conscientes e os estados
nervosos ocorreriam paralelamente, mas não haveria interferência de um sobre o
outro. Para cada estado mental haveria um estado nervoso correlativo” (CAROPRESO, 2003, p. 334).
Aqui surge um ponto importante na
teoria da menta freudiana. Em Sobre a
Concepção das Afasias Freud ainda não havia estabelecido uma distinção
entre o psiquismo e a consciência. Logo, todos os estados mentais se
identificavam com os estados conscientes: “[...] nessa monografia”, diz Caropreso (2003, p. 331),“a restrição do
psíquico ao consciente ainda é mantida por Freud”. Como resultado, nenhum
processo inconsciente, elemento central na sua teoria, pode se apresentar como
um conteúdo representacional. Dito de
outro modo, até 1891 todo o psiquismo, que em escritos póstumos terá o
inconsciente como sua maioria constitutiva, era nos dado na consciência.
É apenas no Projeto de uma psicologia (1895) que Freud trará a luz a polemica
noção de psíquico inconsciente
(CAROPRESO, 2009, p. 150). Vale determo-nos um pouco neste ponto a fim de
desfazermos a impressão desconcertante que esta noção evoca gera.
O “psíquico”, que estaremos tomando
como sinônimo de “mente” no presente trabalho, é, em geral, identificado com a
consciência. Para muitos deve parecer um contrassenso falar de uma mente que
não seja consciente. Falar de mente, na grande maioria dos casos, significa
falar, precisamente, de consciência. Assim, a despeito de por vezes se oferecer
distinções conceituais entre tipos de consciência[1], trabalhos
em filosofia da mente contemporânea frequentemente alternam os termos sem
alternância dos significados. No entanto, para Freud, uma vez que o
inconsciente comporta a maior parte da mente (CAROPRESO, 2009, p. 150), isso não
deve ser problema. Vejamos o seguinte trecho de A interpretação dos sonhos onde Freud, compreendendo os sonhos como
resultados de processos inconscientes, defende que o psiquismo destes últimos
abrange maior quantidade de material representativo do que aquele observado em
vigília: “[...] um sonho é capaz de comprimir um espaço muito maior do que a
quantidade de material representativo com que pode lidar nossa mente em estado
vigília” (FREUD, 2001, p. 81).
Assim se inicia na teoria da mente
freudiana uma distinção tripla e relacionada com as seguintes noções: processos
cerebrais, mente inconsciente e mente consciente (CAROPRESO, 2009, p. 152).
Após O projeto de uma psicologia de
1895, sem mais se comprometer com a identidade entre consciência e mente, Freud
se coloca na tarefa de pensar uma metapsicologia que iria de encontro com as
concepções correntes sobre o estatuto da mente. Num primeiro momento, ainda em O Projeto de um psicologia, Freud começa
por postular uma identidade entre processos cerebrais e processos psíquicos
inconscientes, de tal forma que a mente
inconsciente deverá ser abordada por uma perspectiva naturalista. Já a
consciência, considerada em seu próprio âmbito psíquico, estará para além do
alcance das ciências naturais (CAROPRESO, 2009, P. 153). Isso nos faz pensar
que o psíquico possui um âmbito nervoso, passível da análise científica, e,
também, um âmbito imaterial, que
fugiria do alcance dos métodos científicos. Talvez o segundo ponto, relativo a
mente consciente e imaterial, não suscite tanta surpresa. O mesmo não deve se
passar, contudo, com a ideia de uma mente material. Dizendo em grosso modo,
como poderia haver “duas mentes” numa única pessoa?
Já nos primeiros capítulos de A interpretação dos sonhos, Freud, citando outros autores, enfatiza
a ideia de que os sonhos fornecem evidências da persistência, em nós, de uma
espécie primitiva de psiquismo (FREUD, 2001, p. 78). Em outras palavras,
haveria um resquício evolutivo de uma mente arcaica que já estava presente em
nossos antepassados e que subsiste ― e opera
―, na forma de uma mente inconsciente, em nós. Esta tese é especialmente
problemática e interessante, pois abre a possibilidade de pensarmos em
comportamentos manifestos oriundos de instâncias que não se anunciam por meio
de uma representação de vigília, mas que deixam anunciar suas causas psíquicas com grande dose de
riqueza através dos sonhos.
Freud deixa claro que os processos
inconscientes são processos nervosos
e que um dia os primeiros poderão ser explicados por meio dos segundos
(CAROPRESO, 2009, p. 161). Mas isso não basta. Segundo Freud, apesar da composição dos processos inconscientes
ser material, para se fazer emergir a
mente inconsciente é necessário uma determinada configuração do sistema
nervoso. Assim, não basta a existência de um sistema nervoso sem uma dada
organização. Propriedades emergentes, como tais, exigem combinações complexas
entre suas partes componentes para fazer persistir um âmbito, em si mesmo,
irredutível ao outro. Assim, se atendido as exigências físicas e
organizacionais, uma mente, tendo a mesma composição material do tecido
nervoso, emergirá sem se reduzir a ele. Caropreso (2009, p. 161), fazendo
referencia a Teixeira (2000), e evocando a teoria da superveniência/emergência
para interpretar Freud, adiciona os seguintes termos:
[...] fatos e propriedades de nível superior (B) “supervém” a fatos e propriedades de nível inferior (A) se: em primeiro lugar, existe uma covariação entre B e A; e em segundo lugar se existe dependência entre B e A; e, em terceiro, se fatos e propriedades B são irredutíveis a fatos e propriedades A. Esses são os requisitos que permitem afirmar uma relação de superveniência entre dois tipos de fenômenos. Se, além desses três requisitos, as propriedades de nível superior (B) derivarem “necessariamente” das alterações daquelas de nível inferior (A), pode-se dizer que, além de supervenientes, elas são também “emergentes”. Portanto, são emergentes aquelas propriedades supervenientes que derivam necessariamente das alterações das propriedades de nível inferior.
A aproximação de Freud da
perspectiva emergentista não é, segundo Caropreso (2009, p. 162), exata.
Contudo, não parece totalmente injustificado vermos Freud próximo de uma
perspectiva emergentista, ainda que nele não se encontre, exaustivamente, todos
os requisitos de uma perspectiva desse tipo.
Se tomarmos a sugestão de Caropreso,
podemos entender os processos primários
contidos em A Interpretação dos Sonhos
(FREUD, 2001, p. 575) como sendo uma instância ou propriedade emergente dos
processos nervosos. Os processos primários, por sua vez, e uma vez atendidos
determinados critérios, fariam emergir os processos
secundários. Em verdade, Freud afirma a “prioridade cronológica” dos processos
primários (FREUD, 2001, p. 506), o que reforça a hipótese de Caropreso acerca
da perspectiva emergentista na teoria freudiana. Por fim, cabe pensar a
consciência entendida como consciência
fenomênica, o que é, para Freud, e a semelhança de outros filósofos, um
enigma (CAROPRESO, 2009, p. 164).
Poderíamos talvez especular que a
consciência é uma segunda propriedade emergente, isto é, emergiria de outras
propriedades já emergentes como os processos secundários, que na teoria
freudiana já se tratam de processos superiores. Ou então poderíamos sugerir
como que uma bifurcação emergente dos processos primários, fazendo emergir
propriedades dos processos secundários e
propriedades da consciência fenomênica Em todo caso, os problemas que
enfrentamos com a teoria da mente freudiana se mostram semelhantes com a de
outros filósofos. Outras perspectivas de interpretação parecem igualmente
possíveis e merecem apreciação.
- Benny
Referências Bibliográficas
BLOCK, N. Two neural correlates of
consciousness. Trends in cognitive sciences, v. 9, n. 2, p. 46–52, fev.
2005.
CAROPRESO, F. As origens do conceito de inconsciente psíquico na teoria
freudiana. Natureza Humana, v. 5, n. 2, p. 329–350, 2003.
CAROPRESO,
F. A filosofia da mente de Freud. In: MURTA, C. (Org.). Ensaios em Filosofia e Psicanálise. Vitória: EDUFES, 2009.
FREUD,
S. A interpretação dos sonhos. Rio
de Janeiro: Imago, 2001.
[1] Ver, por exemplo, a distinção
conceitual entre “consciência fenomênica” e “consciência de acesso” em Ned
Block (2005,
p. 46).
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