Bergson e a temporalidade psíquica
Por Benilson Nunes
Bergson, em seus primeiros trabalhos, particularmente no Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, reservou a duração, e o seu caráter movente e unificado, apenas à consciência. Assim, ele distinguiu o aspecto dinâmico e fluido da experiência do aspecto estático do reino físico. Foi apenas posteriormente, em Matéria e memória, que essa distinção de tipo dualista foi desfeita e Bergson passou a adotar um monismo — mais especificamente, um monismo de tipo pampsiquista. Daí em diante, “duração” passou a designar algo que permeia todo o universo: a dimensão durativa da realidade seria, por assim dizer, o “bloco de construção”, bem como a força motora, de toda a realidade. Logo, o referente de “duração” não diria mais respeito apenas à consciência, mas também diria respeito, fundamentalmente, a tudo o que existe.
Mas o que é a duração ou a dimensão durativa da realidade? É aquilo que, segundo Bergson, melhor caracteriza a experiência consciente: a sua natureza movente, com seus momentos interpenetrados e incessantemente inéditos. Tal natureza movente, como já foi dito, constitui, igualmente, para além da realidade psíquica, o estofo de toda a realidade. Tal visão de mundo vai de encontro com o que Bergson chamou de “concepção cinemática do universo”. Segundo essa concepção, o mundo consiste, em última instância, de momentos instantâneos descontínuos: seriam como cortes tridimensionais não durativos ao longo do tempo. Cada um destes cortes ou momentos, sendo instantâneos e, portanto, carentes de duração, resumiriam um instante estático desprovido de eventos, o que nos deixa de explicar como o movimento, enfim, pode ser real.
Mas o movimento e sua duração é real. Temos a experiência dele a todo momento em nossa experiência psíquica ordinária. Quando ouvimos um som, por breve que seja, ele possui alguma duração e dinâmica intrínseca. Seria implausível pensar que a experiência sonora, ela própria, e não os modelos que utilizamos para interpretá-la, seja constituída por cortes instantâneos separados e não durativos. Todo som, enquanto experiência mental, dura — por mínimo que seja. Essa duração, para Bergson, vale dizer, a despeito de sua dinâmica, é contínua e ininterrupta, de tal forma que, se fôssemos representá-la temporalmente, não devemos conceber a possibilidade de um terceiro ponto entre dois pontos contíguos ao longo de uma mesma duração. É por isso que Bergson fala de interpenetração dos estados, de tal forma que a incessante mudança, ao final de seus estados, forma uma unidade.
Uma digressão agora se fará útil. Bergson pretende falar de como as coisas são. Devemos, assim, ter o cuidado de não confundir a coisa com os modelos que utilizamos para explicá-la. A física moderna, por exemplo, recorrendo ao cálculo para pensar e comunicar os fenômenos, está, nesse ato, confeccionando um modelo de explicação. Ela adota, assim, um ponto de vista determinado que acredita ser útil para atender os valores cognitivos almejados de certa época: digamos, por exemplo, poder preditivo, simplicidade explicativa, coerência téorica, etc. ― e também podemos dizer que ela pretende um arcabouço teórico que permita embasar desenvolvimentos tecnológicos futuros: a ciência positiva possui anseios, na modernidade, sobretudo técnicos. Mais ainda, os modelos de explicação das ciências positivas se alteram ao longo do tempo, mostrando, com isso, mais um grau de relatividade dos seus instrumentos teóricos. E assim deve ser, dado que o desenvolvimento científico se dá paulatinamente pelo aperfeiçoamento de seus modelos explicativos.
Mas e Bergson? Bergson pretende fazer metafísica. Certamente, a metafísica, ao ter de comunicar o seu conhecimento ― ou suas intuições, como Bergson diz ― necessita de seus modelos de explicação, tão como a física. Todavia, seus modelos, segundo o autor, não encerra o exercício filosófico. O filósofo deve sempre saber disso. A linguagem utilizada para comunicar a intuição metafísica deve ser entendida mais como um direcionamento do espírito para o conhecimento do que o conhecimento mesmo. A intuição é o que importa, segundo Bergson. Assim, devemos utilizar os meios que a linguagem fornece para comunicar nossas intuições, mas sem esquecer de chegar na intuição mesma. A intuição seria o ponto onde o sujeito é capaz de apreender as coisas para além de seus esquemas de enunciação. É ali onde a intuição ocorre que a filosofia, ou o conhecimento efetivamente pretendido, acontece.
A intuição, assim, desemboca na duração. A duração, para Bergson, estando para além dos modelos de enunciação utilizados para comunicá-la, não deve ser confundida com estes. Esse além, vale dizer mais uma vez, muito diferente das formas discretas que a enunciação numérica apresenta, é constituído por um movimento ininterrupto que só o esforço intuitivo do investigador pode alcançar.
Disso se segue que, para Bergson, e diferentemente do fenomenismo kantiano, podemos obter, via intuição, conhecimento do real. Em especial, mas não somente, podemos obter conhecimento da realidade experiencial, espiritual ou psíquica, pois esta se encontra mais intimamente ao nosso alcance. Todavia, importamos instrumentos de apreensão externos para a nossa realidade interna ― psíquica ― e acabamos por ter uma interpretação errônea da duração da vida consciente. Ao utilizarmos os modelos de interpretação da matéria para a dimensão psicológica, separamos a duração mental em instantes distintos no tempo, tal como separamos os objetos do mundo externo.
Tal maneira de pensar o mundo interior mediante os aparatos que utilizamos para pensar o mundo externo é atomista: os estados ou momentos mentais ficam encerrados em “átomos”, formando um colar de contas que se prolonga ao longo do tempo sem formar ao fim uma unidade, tal é a forma de pensar do atomismo psicológico. Segundo essa doutrina, cada átomo psicológico é uma entidade autônoma capaz de existir, sem que o mesmo mude intrinsecamente, em diversos outros contextos psicológicos. Essa maneira de pensar, diz Bergson, é vantajosa quando se trata de elaborar explicações geométricas e aritméticas, mas não quando se trata de apontar eventos da consciência que não se deixam capturar por modelos discretos de explicação. Por isso, para o mundo interno, ou a dimensão durativa da consciência, devemos utilizar outros termos, conceitos flexíveis, capazes de apontar um real que não se deixa capturar por conceitos que prevê realidades estáticas.
Do atomismo psicológico, surge a concepção retentiva da experiência consciente. Segundo essa concepção, os estados mentais que experienciamos aparentam se estender por certo intervalo de tempo, mas, em verdade, objetivamente falando, eles não duram tal como na experiência subjetiva. Nossas experiências, nesse caso, ficam encerradas em intervalos momentâneos. Bergson, por outro lado, adota a concepção extensiva da experiência consciente. Nesta, os estados conscientes, tal como nos aparecem, se prolongam objetivamente ao longo de certo tempo. O que já era de se esperar, mesmo Bergson não tendo falado explicitamente sobre uma “concepção extensiva”, dado que a sua metafísica é fundamentada, in totum, no que ele referencia por “duração”.
Uma outra alternativa seria enquadrar Bergson como um presentista. Os presentistas entendem que o presente possui estatuto ontológico exclusivo. Eventos que não estão situados no presente não existem. Mas isso não condiz com a posição bergsoniana, dado que o passado, em sua metafísica, possui sua realidade. Para Bergson, o passado é tão real quanto o presente. Mais ainda, o presente, para se fazer real, depende do passado para se “prolongar”, tal é o fluxo durativo da consciência em sua filosofia.
A concepção extensiva de Bergson da experiência consciente prevê um fluxo psíquico com interpenetração dos estados. Um dado estado X se prolonga em um estado Y que se prolonga em um estado Z ininterruptamente. Tal continuidade interpenetrada a concepção retentiva não acomodaria. Vejamos o porquê.
Na concepção retentiva, a ideia central é que o passado fica retido em um dado momento e, depois, em outro momento. Assim, na experiência auditiva de uma nota-G, por exemplo, tem-se retido a experiência passada de uma nota-C e de uma nota-E. Mas algo merece atenção: para o “retensionalista”, objetivamente falando, as três notas, por estarem sendo experienciadas ou lembradas em um mesmo momento, ocorrem simultaneamente, a despeito da experiência subjetiva apresentar essas notas de maneiras sucessivas. Encerra-se esse momento. Em um outro momento, uma outra nota, digamos a nota-D, será escutada. Simultaneamente, de modo semelhante e considerando as notas de antes, teremos a nota-G, a nota-C e a nota-E sendo experienciadas. O importante que cabe notar aqui é que estes momentos com experiências simultâneas são discretos, ou seja, são descontínuos, externos uns aos outros.
Já na concepção extensiva, os momentos ― se falamos em momentos ― englobam, objetivamente, estados ou processos distintos sucessivos. A própria sucessão, vale dizer, é experienciada e consome certo intervalo de tempo. É diferente do caso retentivo, onde os estados, objetivamente falando, são simultâneos, ao invés de sucessivos. Assim, se temos um momento T1, nele próprio encontraremos uma nota-G sendo seguida de uma nota-D. Em um segundo momento T2, teremos a nota-D sendo seguida de uma nota-E. É importante perceber que a nota-D não será experienciada duas vezes, pois isso seria irrealista fenomenologicamente. Em um terceiro momento T3, teremos a nota-E sendo seguida da nota-F. A nota-E, da mesma maneira da nota-E, será experienciada apenas uma vez. Todas as notas, nessa sucessão de momentos, interpenetram-se em uma cadeia, ou fluxo, que se prolonga ao longo da duração da consciência. Certo que, falando de notas musicais, teremos um fim da melodia, mas a duração psíquica, segundo Bergson, não cessa, prosseguindo indefinidamente desde o nascimento do sujeito.
A concepção retentiva, cabe observar por fim, não prevê ligações efetivas entre os momentos da consciência. Cada momento se encerra na nota experienciada e nas notas retidas. A concepção extensiva oferecida por Bergson, por outro lado, prevê uma real ligação, e a efetiva experiência da mudança, entre dois momentos da experiência psíquica, de tal forma que o fluxo de consciência forma um todo contínuo fluido. Esta visão tem a vantagem de melhor atender a intuição comum a respeito da experiência consciente que temos.
Por fim, devemos lembrar que a duração na metafísica bergsoniana não está confinada à mente. Ela também é o elemento primordial que constitui o mundo material. A metafísica bergsoniana é uma metafísica monista. Assim sendo, o que vale para consciência, em sua filosofia, vale também, em dimensão fundamental, para a matéria. Nesse caso, tão como o fluxo mental, há também um fluxo material. A duração da matéria, segundo Bergson, não muda em essência, mas apenas em grau. Haveria na dimensão material um campo durativo mais “relaxado” ou “distendido” quando comparado com aquele na dimensão psíquica. Em todo caso, deve-se falar também, para a matéria, em momentos extensivos, e não instantâneos.
(o presente texto constitui um resumo, com acréscimos, do artigo de Dainton citado na bibliografia abaixo)
Bibliografia
DAINTON, B. Bergson on temporal experience and durée réelle. In: PHILLIPS, I. (Ed.). The Routledge Handbook of Philosophy of Temporal Experience. Routledge, 2017. p. 93–106.
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