Filosofia Hardcore 1

 

 

1. Introdução: metafísica, realidade e ontologia


Uma das formas de estudar filosofia é abordando os seus problemas diretamente, mas diretamente mesmo, que é diferente de ir em busca de seus autores ou de uma terminologia que é quase sempre carregada e tediosa. Por exemplo, alguma coisa fora do comum, uma ideia, nos acomete e lá estamos concentrados nelas. As coisas, aliás, nem precisam deixar de fazer sentido para que comecemos a pensar mais profundamente nelas: Por que as verdades matemáticas valem em todo caso? Não haveria um mundo onde 2 + 2 seria igual a 5? Assim, mesmo coisas inegáveis parecem nos deixar perplexos se tivermos paciência para pensar nelas.

Vamos então propor uma filosofia de alvo direto ou, como sugere o nome do canal, uma filosofia hardcore. Essa filosofia terá como principal característica a sua incisividade: ela vai lá e pow! Qual é o problema? Feito isso, jogaremos as cartas na mesa, os pressupostos, as verdades mais ou menos consensuais ou mesmo as ideias de senso comum que temos disponíveis. Sendo assim, já podemos começar com um problema para testar esse método. Eis o problema.

Tudo o que existe parece possuir poder causal, isto é, tudo parece ser capaz de produzir efeitos no mundo desde que, claro, algumas circunstâncias sejam satisfeitas. Quem discordaria disso? Tocamos as coisas, movemos elas, movemos nós mesmos, alteramos nossa fisiologia com medicamentos, explodimos edifícios, etc. As coisas nos afetam e nós afetamos elas e assim por diante. Diz-se que a realidade transcorre com uma cadeia causa-efeito. Isso parece simples. Mas vejamos o contrário. Tente pensar em algo que não afete nada, algo sem poder ou eficácia causal (são termos técnicos que os filósofos usam). Pense: isso se chama epifenômeno. Eu pensei ― na verdade todo mundo pensa nisso ― em algo como a sombra. Ela não tem força mecânica, nem as formigas possuem problema com ela. Ela parece ser a ausência de algo (a luz) ao invés de ser a presença. Ela não parece afetar as coisas por si só. Mas não é tão simples assim. Inclusive, quando se trata de separar coisas com e sem poderes causais, a filosofia, com nosso pano de fundo materialista, pega fogo. Mas calma, se não entendeu até aqui, estamos indo bem, pois problemas filosóficos não atravessam os séculos à toa.

Ok, deixemos isso de lado um pouco. Vamos falar de uma metafísica mais geral que entrevemos acima. Dizem que o mundo é totalmente material. Dizem que temos cérebros antes de termos mentes ou consciências (assumindo que estas não sejam materiais [ASSUMAM ISSO POR ENQUANTO, pois eu sei que você pode já ser um materialista convicto]). Bom, aqui temos um assunto muito caro para a filosofia e também para as ciências naturais. Vamos também voltar nesse assunto depois (é indo e voltando assim mesmo, acostumem-se). Importa agora definir, já que falamos nela, o que é matéria, já que o mundo, ou seja, tudo o que existe, é, supostamente, todo material. Podemos perguntar de antemão: toda matéria possui massa? Não sei. Isso não parece claro entre os físicos e nem vou eu até o departamento de física elementar perguntar sobre, pois não moro perto da universidade. Acho, em todo caso, que podemos, por enquanto, pensar por nós mesmos. As partículas elementares que a física quântica estuda, por exemplo o Bóson de Higgs, são coisas que eu arriscaria dizer que beiram a metafísica, no sentido de que as suas medições são subjetivas demais. Isto é, o sujeito, por assim dizer, “congela” um momento dessas partículas na hora da medição, sendo que o movimento delas é o que parece mais importante. E mesmo assim, apenas com esses dados, se postula a existência destas partículas com a mesma densidade ontológica de uma carteira de cigarro ou uma bactéria, que pode ser facilmente observada em um microscópio óptico. Enfim, aqui já temos uma forte sugestão de que vale a pena pesquisar sobre a ontologia da matéria, tanto da física quanto da metafísica. Mas espere um segundo: duas ontologias? Mais um problema. Se a realidade é uma, a ontologia das partículas elementares da matéria deve estar de acordo com a “ontologia” métrica da física de partículas. Nossa! Aqui eu me aventurei. Por favor, tenham paciência comigo quem entende de física de partículas. Podemos falar até de outras partículas nos comentários. Participem.

Tá ok: ontologia e metafísica. O que é isso afinal? Eu vou propor uma definição. Ontologia é uma maneira suave de dizer metafísica, que é um termo que incomoda as ciências naturais e sociais. Fala-se em metafísica, pior ainda, quando se quer falar de coisas tilelês (aquelas coisas que incluem horóscopo, cristais, espiritismo vulgar, etc.) da pior espécie. Aliás, vamos incluir logo um pequeno parágrafo para isso, vamos lá.

O público em geral, quando se fala em metafísica, infelizmente, parece muitas vezes preferir as explicações com teor religioso ou místico. Como resultado, há muita desinformação acerca do assunto circulando em livros e sítios da internet. Algumas dessas desinformações, inclusive, são um tanto curiosas. Com uma rápida pesquisa no YouTube®, por exemplo, é possível encontrar vídeos com pessoas falando sobre coisas sobrenaturais e física quântica ao mesmo tempo ― e isso não é um exagero retórico, vale salientar. Não sabemos até onde isso pode afetar o ânimo de teóricos da mente sérios, mas, certamente, ao sequestrar reconhecimento, constitui um empecilho para o avanço dos estudos sobre a consciência. Fecho aqui.

Ontologia é o estudo do ser, das coisas, dos processos, dos objetos do mundo. É o estudo, mais especificamente, do estatuto real e fundamental das entidades. Metafísica é isso incluindo a cosmologia, o estudo da consciência, o estudo fundamental da matéria, do tempo, do livre-arbítrio, dentre outras coisas. É simples. Uma maneira grosseira, mas útil, de definir metafísica é dizer que ela é o estudo de tudo aquilo que não possui material empírico para verificação pública. Esse é o dogma do empirismo lógico, um momento da filosofia já passado. Em outras palavras, metafísica dá para fazer deitado no sofá, já as ciências naturais precisam de um laboratório com instrumentos de registro dos dados coletados. Nesse sentido, a metafísica trabalha com deduções e também intuições. Lembrem-se de Descartes: se eu duvidar da minha existência eu automaticamente comprovo ela, pois algo que não existe não pode duvidar. Isso não precisa de um espectrofotômetro ou de uma máquina de PCR pra se saber. E por que vamos utilizar aqui o termo ontologia? Porque é uma palavra que ajuda às vezes na elegância e condução textual. Em todo caso, se algo é ontológico é porque existe na realidade.

Agora a gente volta a uma questão que ficou para trás. A realidade é a coleção de ontologias ou entidades ontológicas se preferirem. Ah! Um antigo professor, se não me engano o Dr. Paulo Abrantes que na época lecionava na Universidade de Brasília, utilizou uma vez o termo “mobiliário” ontológico. Esse termo parece bom para nós. Podemos então falar também em mobiliário metafísico. Isso é tudo o que existe, isso é tudo o que é real. E para ser real, para fazer parte do mobiliário ontológico da realidade, o que é necessário? Voltemos: é necessário possuir poder causal? Mas e os epifenômenos como a sombra? Eles não possuem causalidade, mas parece certo que eles existem. Poderíamos dizer, e há quem diga, que eles não passam de ilusões, mas também devemos nos perguntar se ilusões possuem, ou não, estatuto ontológico. Vejamos um exemplo. Sonhos são ilusões, certo? Eles, os sonhos, parecem existir de alguma forma para mim. Ilusões, direi, ocorrem e tudo o que ocorre deve ocorrer em algum lugar e fora da realidade que não é, pois podemos concordar aqui que tudo, seja uma ocorrência, um processo ou um objeto, está na realidade. Ora, devemos postular uma segunda realidade para essas coisas com, por assim dizer, menos densidade ontológica? Eu sugiro que não, ao menos por ora, pois isso nos dará complicações.

Realidade, ontologia e metafísica: já sabemos o suficiente sobre o significado básico dessas coisas para seguir em frente? Vamos fechar nossa minidiscussão assim: metafísica estuda o mobiliário ontológico da realidade. Está bom? Não hesite em voltar o vídeo caso esses três conceitos não estejam minimamente claros. De todo modo, não é preciso, e eu nem sugiro para vocês, uma noção aprofundada do que é metafísica, a realidade e a ontologia. O que vimos até aqui, juntamente com o problema da eficácia causal, nos basta. No próximo vídeo/texto iremos partir de primeira para o problema da consciência. O problema da consciência é importante demais para que os filósofos fiquem adiando sem parar com suas prolixidades. É preferível conhecer logo então essa questão para que todo o resto faça sentido. Afinal, todos os problemas da filosofia desembocam nele, confiem em mim.


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