Filosofia hardcore 2
2. A maioria dos psiquiátricas acreditam em entidades parapsíquicas
Comecemos sendo dualistas quanto ao problema mente-corpo: mente ou consciência e corpo ou matéria são fundamentalmente distintos. "Fundamentalmente" aqui significa radicalmente distintos. Em Nunes (2018) colocou-se logo de uma vez cada um (consciência e matéria) em um cosmo (universo) diferente, um dualismo cósmico. Pois bem, a visão concorrente da nossa proposta será o materialismo, segundo o qual tudo o que existe pertence à "impiedosa realidade material-energética" (GABRIEL, 2018, p. 12). Essa visão, defenderemos, é equivocada. A nossa vida abrange a dimensão da consciência que ultrapassa o que entendemos, em geral, por matéria. Quando alguém vivencia uma dor, o substrato nervoso não encerra a cadeia de fenômenos: temos também a experiência subjetiva da dor. Experiências, por mais que dependam da atividade cerebral, uma vez que tenham sido produzidas, passam a conter realidade própria. Por isso, a cada experiência que temos, uma realidade supramaterial, ou a consciência, está em cena.
Se abrirmos, in vivo, o crânio de uma pessoa para alcançar o seu tecido cerebral, não encontraremos lá estados psíquicos, mas apenas células, moléculas e mecanismos diversos. Uma grande complexidade biológica estará presente, mas não fará sentido dizer que ali, mesmo entre as menores moléculas, estão as experiências conscientes. Isso ocorre por uma razão simples: moléculas não são experiências. Parece certo que elas, ou parte delas, participam da atividade cerebral responsável por produzir estados conscientes, mas elas próprias não coincidem com o que esperamos encontrar se o que se quer encontrar são experiências.
Surge, então, o seguinte problema: se a nossa consciência não está no cérebro, onde ela está? A questão, adiantaremos aqui, é que ela não pode ser encontrada, mas apenas vivenciada. Certamente, ela é produzida em alguma parte do cérebro, mas encontrar o local de sua realização não é encontrá-la. Esse é um dos grandes erros que naturalistas ou pesquisadores podem cometer ao estudar os correlatos neurais da consciência: confundir o realizador com a coisa realizada. Inspirados por esse erro, os materialistas insistem em reduzir ontologicamente a consciência a uma porção de matéria que, de fato, não exibe conteúdos da fenomenologia psíquica.
Quem decide negar o reducionismo materialista não deve, contudo, se render ao espiritualismo místico[1] para dar conta dos fenômenos psíquicos. Explicações desse tipo, por mais que possam vir a defender a realidade da consciência, não são capazes de fornecer intuições que toquem verdadeiramente o problema. Se fazemos isso, ao invés de estarmos buscando o nosso objeto de investigação, estaremos fabricando-o. A recusa do materialismo deve, portanto, ter o cuidado de passar longe da superstição ― seja ela difusa ou religiosa. Uma outra maneira de dizer isso é estabelecendo que para além dos fenômenos que encerram a matéria há apenas a experiência psíquica simpliciter.
Diremos novamente o que foi dito no vídeo anterior. O público em geral, infelizmente, parece muitas vezes preferir as explicações com teor religioso ou místico. Como resultado, há muita desinformação acerca do assunto circulando em livros e sítios da internet. Algumas dessas desinformações, inclusive, são um tanto curiosas. Com uma rápida pesquisa no YouTube®, por exemplo, é possível encontrar vídeos com pessoas falando sobre coisas sobrenaturais e física quântica ao mesmo tempo ― e isso não é um exagero retórico, vale salientar. Não sabemos até onde isso pode afetar o ânimo de teóricos da mente sérios, mas, certamente, ao sequestrar reconhecimento, constitui um empecilho para o avanço dos estudos sobre a consciência.
Ainda sobre essa questão, uma pesquisa realizada em 2014 no Congresso Brasileiro de Psiquiatria nos sugere algumas coisas (MOREIRA-ALMEIDA; ARAUJO, 2015). Foram entrevistadas 629 pessoas, a maioria psiquiatras, com as seguintes perguntas: “Você acha que a mente (o seu ‘eu’) é um produto da atividade cerebral?” e “Você acha que o Universo (tudo o que existe) é composto apenas de matéria (partículas e forças físicas)?”. O resultado foi o seguinte: 47% das pessoas responderam “não” para a primeira pergunta e 72% responderam “não” para a segunda. No caso do estudo refletir realmente o que os psiquiatras pensam, o resultado da segunda pergunta evidencia algo interessante para gente, a saber, que entre psiquiatras o materialismo não é a visão predominante. Mas é o resultado da primeira pergunta que nos importa agora, pois ela, ao nosso ver, traça uma posição mais drástica contra o materialismo — e também contra o naturalismo, isto é, contra a ideia de que tudo o que existe pode ser explicado pelas ciências naturais. Para analisar isso, podemos fazer a seguinte indagação: se não é o cérebro que produz os fenômenos mentais, o que os produz então? O que estava, afinal, passando na cabeça de quem respondeu “não” para a primeira pergunta? A menos que haja alguma outra atividade do nosso corpo que produza os fenômenos mentais, parece que não encontraremos um substrato realizante conivente. O nosso palpite é que a resposta negativa dos entrevistados está relacionada com convicções religiosas ou superstições pessoais que tendem a desarticular a mente do cérebro de tal forma a proteger a crença de que é possível mentes “soltas”, autossuficientes, no universo. Possivelmente, isso tem a ver com acreditar na vida após a morte ou em fenômenos parapsíquicos que violam as leis da física que governam a matéria. É certo que nem tudo o que existe é material — lembrem-se: estamos defendendo isso —, mas desatar a mente do cérebro dizendo que a mente não é produzida pela atividade cerebral é dar um passo excessivamente largo contra o materialismo. Percebem esse exagero?
Mas será possível uma explicação para a subjetividade da consciência que nega o materialismo e o espiritualismo místico ao mesmo tempo? Algo que respeite parte das bases naturalistas (das ciências naturais) e salve a ontologia da mente? Esperamos assegurar que sim. Também porque, apesar de não termos avisado antes, não estamos a negar absolutamente todo tipo de materialismo. Um materialismo de tipo não reducionista[2] pode ser, até certo ponto, admissível com a nossa visão. Do mesmo modo, desde que não se trate de uma teoria que prevê almas passeando pelo mundo ou poderes sobrenaturais da mente, um espiritualismo cético e responsável também terá, com ressalvas, lugar na teoria que estamos propondo. Mas cristais, horóscopos, terapia quântica, etc., ficam de fora.
Por fim, uma questão terminológica. Estamos utilizando os termos “mente”, “consciência”, “psíquico”, “fenomenologia”, etc., indiferentemente quanto a ontologia.
[1] Nem todo espiritualismo está atrelado ao misticismo. Um espiritualismo filosófico do tipo que defende a realidade da consciência sem recorrer à superstições nos parece perfeitamente possível. Espírito, nesse caso, sendo sinônimo de consciência ou mente. Podemos citar aqui o espiritualismo de Bergson.
[2] Reducionismo aqui significa reduzir a realidade mental à realidade física do cérebro. A mente, assim, é nada mais que o cérebro físico.
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