O Absurdo


Tinha a faca, bem afiada e pouca reluzente. Seu fraco brilho não era sedutor o suficiente. Mas, tinha a certeza de que sua lâmina era o suficiente para dilacerar minha pele pouco a pouco. Começaria - no primeiro movimento de corte - a remover o curto e frágil tecido epitelial para depois alcançar o conjuntivo onde a invaginação deixaria de ser branca e passasse a ser vermelha.

Pensava em como seria o jorro de sangue ao atingir uma artéria. No momento, o coração acelerado daria impulso para espirrar sangue ao longe. Provavelmente em meio a dor e desespero acabasse cortando um nervo também, o que me atenuaria a dor e agonia.

Queria, ridículamente, que alguém tivesse pena de mim. Como se a atenção de outro humano curasse toda a minha angústia. Nesta hora podia enxergar a pequenês de todo e qualquer medíocre e frágil ser humano.

Passei então a rir, enquanto chorava, ao perceber o quanto minto pra mim mesmo sacralizando amizade, o amor, as pessoas. Esta era a hora de uma força maior dar um sinal. Chegava a urrar de gargalhadas quando me percebia pedindo a Deus que me ajudasse.

Nada, é apenas eu, minha angústia e meu ódio enquanto a conversa fútil e sem sentido de meus pais na outra sala ecoava.

Aproximei a lâmina em meu punho, experimentei movê-la alguns centímetros para saber como é a sensação. O mísero corte neste movimento incrivelmente doeu mais do que uma fraturação óssea e nem chegou a ultrapassar o fino epitélio, era apenas um arranhão, porém um alicerce da morte.

Mais lembranças e nostalgias - fúteis frente ao absurdo - retornaram em visões doentias, voltei a chorar, não tinha ódio agora, tinha apenas pena de mim mesmo e medo. Medo de continuar vivo.

Questionei-me do quanto era covarde me comparando com tantas pessoas que passam dificuldades. Nesta ótica, de fato era eu apenas um garoto mimado e com muito tempo de sobra para pensar e assinar a própria angústia. Contudo, uma certeza eu tinha, um consolo social não me evita a morte eu mesmo a fazendo ou não. E covarde, pensei, é aquele que aceita a morte como um verme coagido, independente de sua hierarquia social. Porque o que faz este covarde aceitar a morte não é a coragem e sim seus fantoches e sagrados consolos.

Já era hora, já estava trancado no quarto a tempo de mais. Meus pais a qualquer momento poderiam entrar com perguntas curiosas e dispensáveis.

Aproximei novamente a faca perto do pequeno corte e deixei que as lágrimas afogadas impregnassem meu rosto. Tive uma sensação de ódio imenso que momentaneamente se converteu em medo e tudo o que eu queria era largar aquela faca.

Eu tremia. Levantei do chão, coloquei a faca no seu esconderijo de sempre e deitei na cama vislumbrando o teto branco. Não podia me matar, não conseguiria. Mas - pensei - não é porque decidi não me matar que me tornarei resignado. Pelo contrário: se a vida é ausente e desprovida de qualquer sentido, aqueles que ousarem de aplicar novos instrumentos de intensificação desta ausência se tornarão meus inimigos.

E, considerando minha existência viva, não permitirei que me façam sofrer além do que já sofro. Procurarei todos os objetos de usurpação da minha liberdade, até aqueles inesperados. Esta é a minha face verdadeira, a face do nada, sem a mentira ubuesca que todos vocês aceitam.

É, por isso, espontâneamente, pelo meu próprio sofrimento, esclarecido pela minha auto-subversão, que sou anarquista.

Nihil Est


- Crowley






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