O Retorno à Intuição Pura de Henri Bergson


A apreensão subordinada à espacialização levanta problemas de ordem epistemológica que, segundo Bergson, apresenta-se como um impasse para o progresso filosófico. Uma vez que não nos voltamos para os dados imediatos, mas já projetamos, como hábito, as medições e distinções da física às impressões que recebemos, acabamos por reproduzir um vício que pode não condizer com a verdadeira natureza do objeto em questão. Isto é, muitas vezes abstraímos, separando e delimitando limites ao que não é passível de medidas.

Sobretudo, falando sobre os eventos psicológicos, atribuímos grandezas espaciais onde não existe espaço. O caráter dos fenômenos psicológicos se apresenta, antes, como qualitativos, em intensa dinâmica, sem demarcações nítidas e isoladas. Uma sensação de alegria, por exemplo, não é algo possível de se aplicar uma régua para calcular sua intensidade em números, pois, na verdade, trata-se de algo com natureza não-espacial. Assim, repetimos o erro de tratar o qualitativo como quantitativo.


O hábito, investigativo, reproduzido pelo senso comum de medir os eventos psicológicos tem sua origem metódica nas ciências positivas, onde se busca aplicar equações a tudo o que é imaginável. Inclusive, muitas vezes, a estados profundos da mente. Esse vício surge da ilusória tentativa de fazer com que os estados da alma se tornem como os objetos físicos exteriores: aparentemente bem demarcados, delimitados e passíveis de cálculos e sem a progressão qualitativa e de ordem durativa. Ora, é aceitável, ao observarmos os eventos exteriores, como a queda de uma pedra do alto de um prédio, que as coisas nos pareçam sugerir uma análise quantitativa. Mais especificamente, usamos a aplicação de um cálculo matemático para medir a velocidade com que a pedra está caindo em sua progressão quantitativa, pois, como a experiência se apresenta, ela cai cada vez mais rápido, ganhando velocidade. Contudo, devemos ter claro que essas medidas são, tão somente, convencionais. Ora, convencional porque as medidas numéricas se apresentam com intervalos rigidamente delimitados. Quando uma pedra está caindo, ganhando velocidade, medimos, na verdade, momentos absolutamente estáticos. Assim, em 
um dado momento, a pedra está em uma posição A e, logo após, em uma posição B. O movimento em si da pedra – que está entre A e B - não é calculado, mas somente os instantes em que estabelecemos, em última análise, convencionalmente. Além disso, estes instantes se tratam de momentos onde o evento ou a pedra está imóvel. Se for possível uma analogia, os instantes sucessivos e justapostos - A, B, C e etc - são como fotos batidas separadas por iguais intervalos de tempo – que neste caso se trata de um tempo espacializado. Contudo, o próprio intervalo onde está o movimento corrido na duração é ignorado. Assim, o estudo troca o verdadeiro movimento pela imobilidade, que somente se faz possível enquanto uma análise espacial do fenômeno.

Pode-se, legitimamente, dizer que essas convenções se prestam adequadamente às ciências físicas. Mas seria possível dizer que estas convenções quantitativas se prestam adequadamente, também, aos nossos estados interiores? Bergson tenta nos mostrar que não: “Considerados em si mesmos, os estados de consciência profundos não têm nenhuma relação com a quantidade; são qualidade pura; misturam-se de tal maneira que não se pode dizer se são um ou vários, nem se quer examiná-los sob este ponto de vista sem logo os desnaturar.”. Neste sentido, Bergson busca desenvolver seu argumento em um retorno à intuição pura, considerando a experiência imediata como toda a informação que podemos ter e, portanto, tudo o mais - como abstrações espaço-temporais encontradas em Kant – sendo fruto de um entendimento convencional útil, mas não coadunável com a proposta da metafísica compromissada com os dados intrínsecos da realidade.


A tentativa de retorno à experiência imediata surge da necessidade de questionar se o entendimento comumente utilizado – aquele que usa da espacialização de fenômenos não-espaciais – é, ou não, adequado para uma metafísica sincera. O hábito de substituir a mobilidade pela imobilidade no exemplo dado acima reflete um vício que persiste nos sistemas filosóficos. Na tentativa de buscar o que existe além da experiência acabamos por injetar formas que congelam a mutabilidade dos fenômenos. Por conseguinte, estas formas não revelam aquilo que a experiência não alcança, mas, muito provavelmente, subverte a realidade mesma das coisas.


Bergson propõe que façamos da metafísica a própria experiência, com sua duração inerente, em sua multiplicidade complexa e constante dinâmica. Somente partindo deste esclarecimento que se apresenta possível a construção de um conhecimento concreto, responsável com os sentidos em vez de ignorá-los ao custo de formalidades abstratas vazias: se “pretendia ultrapassar a experiência; na verdade, não fazia mais que substituir a experiência movente e plena, suscetível de um aprofundamento crescente e, portanto, prenhe de revelações, por um extrato fixado, ressequido, esvaziado, um sistema de idéias gerais abstratas, retiradas dessa mesma experiência, ou antes, de suas camadas mais superficiais”. Este “extrato fixado” costuma ter sua causa na linguagem, uma vez que ela – por meio de palavras e conceitos – aprisionam a dinâmica da experiência em uma imagem estática, imóvel, ausente de duração. A duração aqui se diz respeito à heterogeneidade interpenetrada da experiência, sem distinções precisas possíveis, mas antes um eterno fluir: neste momento, a linguagem não está apta para captar as qualidades pouco ordenadas que se desenrolam. Contudo, mediante a palavra e hábito, congelamos toda a apreensão em momentos distintos e delimitados para melhor comodidade de uma convenção conceitual e, portanto, deixamos passar esquecido tudo o que a experiência pode nos fornecer imediatamente, isto é, sua qualidade, sua duração.


Nietzsche, em uma possível aproximação com Bergson, afirma: “Mediante palavras e conceitos somos ainda hoje constantemente induzidos a pensar as coisas como mais simples do que são, separadas umas das outras, indivisíveis, cada qual sendo em si e para si.”. Ora, pensamos as coisas mais simples do que são justamente por ignorar o que há de mais evidente nos dados que recebemos, ou seja, a multiplicidade qualitativa é suprimida, colocando, em seu lugar, uma mórbida homogeneidade espacial onde, só então, se torna possível uma linguagem ancorada à experiência da forma que o entendimento comumente usado exige. Logo, o compromisso metafísico acaba, antes, subordinado à linguagem, do que sinceramente interessado em sua empresa de origem.

A filosofia de Bergson se trata de uma metafísica voltada para a duração interior, para a consciência, onde se recebem os dados em sua pureza e qualidade. O argumento de Bergson surge da necessidade de retornarmos ao que é próprio da consciência, ao o que, de fato, temos alcance. É preciso deixar de lado, ao menos por um instante, as justaposições e sucessões arbitrárias da ciência - reproduzidas pelo senso comum - para dar chance ao o que a experiência, em sua totalidade, tem para nos oferecer. Assim, abri-se caminho para uma percepção radicalmente nova, respeitando a subjetividade e buscando conhecer o que a linguagem não pode prever. Os estados de consciência escondem ainda o que a filosofia quantitativa ignorou para a consolidação de convenções. Ou seja, apesar de útil – as delimitações precisas da experiência pela física, por exemplo – para a vida social, ainda persiste aquilo que, atropelado pela multiplicidade numérica, não pode ser quantificado: se trata dos estados profundos da alma, eventos de ordem absolutamente qualitativa que se dão em uma complexidade crescente, isto é, na duração.


Com o seu conceito de duração, Bergson abordará o problema da liberdade com uma nova perspectiva, sem os equívocos da inteligência abstrata. Falando sobre o tempo e os eventos de ordem psicológica, não parece razoável adotarmos os métodos filosóficos que adotamos para a exterioridade. Sem a idéia de duração, e insistindo em uma multiplicidade quantitativa aplicada ao exterior, os fatos da consciência continuarão em sua imobilidade, sem sua fluidez e tendo o tempo enquanto medida (espaço) e não como duração pura. Desta forma, segundo Bergson, o determinismo poderá facilmente ganhar o debate, pois é na quantificação dos estados internos que as nossas ações parecem ser determinadas – como ele argumenta no capítulo III do Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência.


Para então finalizar a discussão, se exige falar sinteticamente sobre a duração bergsoniana que se apresenta indispensável para a compreensão da intuição pura:


Os estados de consciência não são na verdade justapostos em intervalos iguais e precisos - como muitas vezes se tenta compreendê-los - mas se trata de uma mudança contínua e fluida, interpenetradas reciprocamente e sem limites precisos.


A multiplicidade pertencente à duração não é, de modo nenhum, de caráter quantitativo, pois, como bem se sabe, quando falamos dos estados profundos da mente, esta multiplicidade se apresenta antes como heterogênea e não passível de uma homogeneização espacial, isto é, não é passível de uma multiplicidade quantitativa como melhor conforto para o determinismo.


Se existem estados psicológicos que nos parecem talvez delimitados, sucessivos e facilmente distintos isto acontece por se tratar de estados mais superficiais, característico da exterioridade e não tem haver com a intuição pura, um estado de consciência em excelência.


Se for possível falar em um vocabulário menos rígido, a duração pura se trata daquilo que a linguagem não está adequada para cercá-la; fazendo da arte um instrumento fundamental para expressar as qualidades dinâmicas ocultadas pelo entendimento quantitativo.


Surge agora a oportunidade de concluir a discussão com as palavras de Bergson: “[...] Mas se, ao passar da estática à dinâmica, esta psicologia [superficial, atenta mais à exterioridade que aos dados internos] pretende raciocinar sobre os fatos que se realizam tal como ela raciocinou sobre os realizados, se nos apresenta o eu concreto e vivo como uma associação de termos que, distintos uns dos outros, se justapõem num meio homogêneo, ela verá surgir à sua volta insuperáveis dificuldades.” Estas dificuldades, argumenta Bergson, surgirão ao trocar a experiência – o eu concreto - pela representação simbólica, culminando, assim, em inúmeros problemas: “E Tais dificuldades multiplicar-se-ão à medida que desenvolver esforços cada vez maiores para as resolver, porque todos os seus esforços não farão mais do que demonstrar cada vez melhor a absurdidade da hipótese fundamental segundo a qual se desdobrou o tempo no espaço e se pôs a sucessão no próprio seio da simultaneidade.”

- Benny.

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