O Pressuposto de Inocência Guarda um Pretexto.


Em um "cálculo moral", se me permitem usar esse termo, o bom cidadão, em uma perspectiva muito objetiva, é tão criminoso quanto aquele que afirma o crime diretamente - tão como é criminoso, por razões semelhantes, quem media a relação entre estes dois, isto é, o Estado (este último é, portanto, o substrato deste cenário). A diferença está mais em nível psicológico ou de comportamento: um é dissimulado e o outro, o que se afirma como criminoso sem delongas, é apenas sincero. Porém, uma vez mais, os dois são criminosos em mesmo nível. Me sinto agora forçado a parafrasear Pondé - o que na verdade Nietzsche já havia dito antes: "A hipocrisia é a essência da vida moral". Grosso modo, uma vez que a sinceridade, seja de quem for, se torna imperativa, a postura de boa pessoa vai buraco abaixo. E mais: em uma perspectiva política, a fronteira que divide o inocente do criminoso é extremamente frágil, estando, em mesma dose de crime, diversos atos aparentemente inofensivos mas com implicâncias intensificadas quando investigadas a fundo.

Em geral, a moralidade sempre tem seu sustentáculo político, que reside em algum tipo de mentira ou pretexto tendencioso (existem outros modelos, mas em geral...). Na tentativa de encobertar esse "pré-texto" (que não é declarado, portanto) surgem cerimônias de divertimento: Nietzsche sabia bem, traçando sua genealogia da moral, que antes de qualquer intenção de corrigir, o ser humano encontra motivo de festa e prazer em punir. Seria como, diria eu, encontrar prazer na desgraça alheia (principalmente pública), não importa o motivo. Contudo, ninguém melhor pra ser o alvo desta festa algoz como alguém que julgamos como criminoso. O problema é que o criminoso flagrante (assim o intitularemos) frequentemente é menos criminoso que o homem de bem. O que faz o criminoso flagrante soar tão pior é simplesmente o fato de ser flagrante e, portanto, de estar passível, por via pública, de ter a negatividade do seu ato amplificada consideravelmente.

Quanto a dissimulação nesta coletânea de afirmações (bandido bom é bandido morto), me parece que o inconsciente destes dois (o ladrão e o bom cidadão) estão bem a par disso. Talvez seja por isso que sentem essa pulsão, motivada por uma culpa entalada na garganta (agora desfigurada), de ficar falando o tempo inteiro coisas óbvias ou triviais. É mais fácil jogar a culpa em um segundo antes que a culpa alcance você: de um lado a carência que se manifesta com a ostentação por migalhas (no ladrão), do outro o "é porque você nunca foi roubado" (no homem de bem). Uma pitada de sensatez é suficiente pra saber que o primeiro é tolo e o segundo óbvio demais, tão óbvio que reflete a preguiça intrínseca deste setor, uma vez que um roubo representa muito mais que a mera cena e implicâncias jurídicas do crime.

Ao bom cidadão, logo, nada resta senão espernear. Ele ignora o fato de que omissão não é menos crime (nem mesmo pro Estado, a priori), pelo contrário, é um crime mais frequente e, além disso, é o crime que perpetua o crime de caráter flagrante - o crime direto, um assalto a banco, por exemplo, tem seu combustível na poltrona do homem de direito. Stirner, no Único, mal precisou ultrapassar o prefácio pra constatar a contradição entre os "homens de bem" e se voltar contra eles: 

"Em vez de continuar a servir com altruísmo aqueles grandes egoístas [homens de bem], sou eu próprio o egoísta" (Stirner, 2009:10)

Com essa afirmação, mais a frente, Stirner chegará mesmo a dizer que um indivíduo, de uma dada perspectiva, só afirma sua existência por meio do crime - é por isso que o homem de bem, mesmo sem saber, é um criminoso de mesmo nível. A ilusão de neutralidade na história, assim, apenas lança mais lenha no que você mesmo não gosta - afinal ainda não se tomou consciência da própria criminalidade da qual você faz parte. Desta forma, na perspectiva de Stirner, queremos ser egoístas, colocar os fins a frente de tudo - sermos criminosos, portanto - mas odiamos quando um segundo tenta fazer o mesmo, ou pior: nos refugiamos em uma dada ordem geral de coisas para poder tacar pedras de lá, com a mediação do Estado. Daí, por alguma razão psicológica ainda não muito bem explicada, se atira pedra no que você mesmo construiu. Por fim, é bem perceptível que há muitos "pré-textos" em cada afirmação, muitas coisas sendo escondidas: sonegação de impostos, omissão de responsabilidades políticas, consumo inconsequente de produtos resultantes de mão de obra escrava, violência ideológica, consumo de pornografia pedófila e por aí vai, aos milhares, crimes diários, com implicâncias holocáusticas a curto ou longo prazo. Somente guardando este lado da moeda, isto é, deixando isso no pretexto de tudo, é que se torna possível atirar pedras sem peso na consciência.

No mundo os únicos inocentes são os recém-nascidos. Bala na cabeça, se disso se tratar, todo mundo merece.

- Benny


Bibliografia

STIRNER, Max. O Único e a Sua Propriedade. Tradução, glossário e notas de João Barrento. São Paulo: Martins, 2009.
SAUL NEWMANGuerra ao Estado: O Anarquismo de Stirner e Deleuze. Verve, 8: 13-41, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral.  Tradução de Mário Ferreira dos Santos. Vozes, 2009.
VIOLÊNCIA SEMÂNTICA: As Motivações do Método Genealógico, 2012; Max Stirner: Introdução ao Prefácio do Único, 2013; O Bom Democrata, 2011; Stirner: Minhas Relações, 2012.

Comentários

Raquel Xavier disse…
Concordo com você (em partes)sobre esse assunto. (Mesmo sendo leiga quando se trata de conhecer as teorias dos grandes filósofos)
Acreditar que o BEM ou o MAU estão separados por pessoas é um erro que muita gente ainda teima em aceitar.De forma mais clara, nem todo bandido é realmente o MAU e nem todo o policial ou cidadão é totalmente o BEM.
O ideal seria que a maioria das pessoas tivesse essa mesma visão (não tão radical...mas com a mesma ideia central).
Parabéns pelo texto e pela forma engajada em que o trabalhou.

Raquel Xavier.


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