Pode-se ser anticapitalista e comprar o que bem quiser (Parte 2)


E quanto ao "fetichismo da mercadoria" contida na última sessão do primeiro capítulo do Capital de Marx? Agora sim podemos falar na terminologia estritamente marxiana. E é de cair de rir que toda vez que alguém utiliza esse argumento comprova que nunca, sequer, leu o primeiro capítulo da obra. Vamos explicar:

Defensores do capital que não usufruem do capital dos meios de produção costumam responder, ao estar diante do argumento da força de produção*, que, ainda assim, Marx sublinha um certo ponto no início do Capital que poderia colocar um anticapitalista em contradição. A questão - muito importante - sublinhada por Marx é sobre "o fetichismo da mercadoria e o seu segredo". Esta sessão, ao contrário do que liberais de internet afirmam, não fala absolutamente nada sobre uma certa sedução pelo objeto físico da mercadoria. É importante dizer que sedução e fetiche são coisas diversas no debate acadêmico da filosofia desde sempre. A sessão, na verdade, trata de como a mercadoria, em função da sua realidade física abstraída, passa a ter um valor abstrato, sobretudo monetário, que ultrapassa o seu valor objetivo ao mesmo tempo em que coincide com ele (o valor se torna objeto).  Marx chama este lado "místico" da mercadoria de "forma-mercadoria" e propõe ainda a seguinte distinção: objeto de utilidade e objeto de valor. Portanto, a mercadoria em qualquer "modo-de-produção" (não só capitalista) possui essas duas facetas, uma objetiva e outra abstrata (mística, fetichiosa), sendo essa última resultante, dentre outras coisas, das determinações sociais sobre o valor do objeto de produção. A sessão, portanto, versa sobre as causas da monetização excessiva sobre a matéria enquanto matéria-de-troca, não de uso e produção. Em outras palavras, em virtude dos elementos sociais que a sobrevém, a mercadoria tende a valer mais do que materialmente vale: ela se torna um fetiche.

Marx também usa o exemplo do custo e tempo de produção. Assim, diversas mercadorias sem muito custo de produção passam a custar mais do que deviam custar, seja em virtude de determinações sociais, da embalagem, do nome da marca, da volatilidade da especulação financeira ou da propaganda de consumo (esses outros fatores fui eu que incrementei, mas todos se congregam no caráter social adicionado à mercadoria). Em verdade, não se trata de um assunto marxiano inédito, o próprio Marx cita Adam Smith nesta sessão. Este valor abstrato, o "valor de troca", se altera em virtude de fatores múltiplos que não o de produção, fazendo com que compremos, muito antes do objeto físico, um objeto "fantasma que paira sobre a matéria". Pagamos, enfim, um "além" que não existe e que, além disso, é dotado de intencionalidade própria.

Daí lá vem o esperto que nunca leu Marx: "Pois é! Vocês, portanto, se deixam seduzir pelo tal valor fetichioso sobre a mercadoria".  Neste ponto já podemos nos sentir aliviados, pois ele - sem ter lido o capítulo - finalmente se convenceu de que não se trata de sedução pelo objeto-mercadoria, mas do fetiche, a forma-mercadoria, que a sobrevém. Mas, novamente, ele se esquece de um ponto: não é a força de produção - nós - quem aplicamos conteúdo fetichioso sobre a mercadoria, mas sim qualquer produto com vistas a troca que, no sistema capitalista, é gerenciado pelos aparelhos da própria burguesia.

Tudo isso não altera o direito sobre o produto por parte da própria força de produção. Na verdade, o conteúdo fetichístico não tem nada a ver com o conteúdo material resultante do braço do trabalhador, isto é, o conteúdo objetivo. Mais ainda, o conteúdo fetichístico é inerente a qualquer produto resultante da produção, não importa a época ou o sistema econômico. Numa sociedade comunista, segundo a lógica de Marx, também existirá fetiche sobre os produtos da produção. Trata-se, enfim, de como surge o valor de algo dentro do sistema capitalista (ou de qualquer sistema de trocas) e não de como o consumidor decide consumir, ou melhor, como ele fica "seduzido" e "alienado" pela mercadoria. Mais uma vez o argumento de que um anticapitalista "está proibido" de consumir o produto da força de produção não tem sentido. Nas palavras de Marx:


"O comunismo não priva ninguém do poder de apropriar-se dos produtos da sociedade; o que faz é privá-lo do poder de subjugar o trabalho alheio por meio dessa apropriação"(Manifesto do Partido Comunista)

- Benny

*este argumento é desenvolvido na primeira parte do texto "Pode-se ser anticapitalista e comprar o que bem quiser - Parte 1".

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